Em 2018, os mais importantes prêmios da literatura de língua portuguesa agraciaram a poesia. À cidade (independente), de Mailson Furtado, venceu o Jabuti e Câmera lenta (Companhia das Letras), de Marília Garcia, conquistou o primeiro lugar do Oceanos, que abrange todos os países lusófonos. As premiações refletem a visibilidade conquistada pelos versos nos últimos tempos, fazendo com que a poesia perca a pecha de prima pobre da literatura.
“Estamos vivendo um momento muito importante da poesia, com produção de alto nível. Há muita coisa boa sendo feita. Há a explosão nessa produção, que conta com estéticas diferentes. Os poetas estreantes estão com livros muito bons”, diz Marília Garcia. A autora carioca destaca que 2018 “foi um ano muito forte”, com muitas traduções, o que considera surpreendente. Garcia afirma que a poesia está em ascensão em decorrência da procura do público e que “as premiações demonstram a força da produção brasileira”.
Para Mailson Furtado, o destaque da poesia nos concursos literários contribuem para que o gênero conquiste novos leitores.
O poeta cearense percebe crescente interesse por sua poesia. Antes de ganhar o Jabuti, dividia o tempo entre a profissão de dentista e a produção literária e teatral. Agora, cada vez mais, ele se dedica a compromissos provenientes da literatura. “Na cidade onde moro, as pessoas conversam sobre poesia nas calçadas.
A premiação de livros de poesia reflete o momento em que se dá atenção a produções que ficavam à margem, como a literatura feita por mulheres e negros, diz Adriane Garcia, vencedora do Prêmio Paraná de Literatura, em 2013, com Fábulas para o adulto perder o sono. “Há uma cobrança das pessoas que fazem literatura. As instâncias de poder começam a se atentar para essas questões”, afirma.
Adriane lembra que o habitual é premiar romances e “quando muito, contos”. “A poesia era a prima esquisita. Todos dizem que ela é o ápice da linguagem, mas a poesia fica de fora de todas as listas que recomendam livros e fora das premiações”, analisa.
De acordo com a escritora mineira, dois motivos ampliaram o espaço da poesia: a expansão das pequenas editoras e as redes sociais. “As pequenas editoras democratizaram, dando mais visibilidade a poetas, livros e poemas”, diz. Por outro lado, o gênero se adapta mais confortavelmente às redes sociais, se comparado à prosa. “Elas privilegiam o rápido e curto.
O escritor Tadeu Sarmento, pernambucano radicado em Belo Horizonte, reforça o papel das redes sociais na difusão da poesia. “A leitura de poesia se disseminou nas redes sociais. A pessoa não vai ler o capítulo de um romance no feed do Facebook, mas pode ler um poema. A rede social mudou essa faceta do leitor. Temos mais gente consumindo poesia, escrevendo, tentando publicar, discutindo poesia”, diz. Na avaliação dele, os prêmios contribuem para derrubar o mito de que romances vendem mais do que a poesia.
O olho e o humor
O escritor Tadeu Sarmento se dedicou à prosa, embora paralelamente se aventurasse nos versos. O incentivo da esposa e poeta Adriane Garcia o fez insistir. O resultado é Um carro capota na lua, que venceu, em 2016, o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura na categoria poesia. Publicação de estreia da Tercetto, novo selo editorial mineiro coordenado pela também poeta Thais Guimarães, o livro será lançado hoje, às 10h30, no espaço Guaja.
Sarmento conta que o apoio de Adriane foi essencial para ele acreditar na qualidade dos versos. “Tinha um arquivo com vários poemas.
O livro traz 36 poemas que funcionam como narrativas. “Tem um ‘eu’ disperso que comenta os fatos históricos. Não gosto de poesia confessional. Minha vida é comum. Interesso-me pela vida de outras pessoas, o que acontece no mundo”, diz. O prêmio chancelou a incursão de Tadeu pela poesia. “Fiquei felicíssimo. Costumava inscrever meus trabalhos de prosa em prêmios de livros inéditos.
UM CARRO CAPOTA NA LUA
. De Tadeu Sarmento
. Tercetto
. 82 páginas
. R$ 35
LANÇAMENTO
Neste sábado (15), às 10h30, no Guaja (Av. Afonso Pena, 2.881, Funcionários).
O som e o ato
Câmera lenta é o quinto livro de Marília Garcia. Ele começou a escrever em 2008, mas parou em alguns momentos, para se dedicar a outros projetos. Ler poesia em voz alta, em apresentações para o público, mudou sua maneira de trabalhar os versos. “Meu primeiro livro foi publicado em 2007, mas nunca havia lido um poema em voz alta. Quando li, percebi que eles não funcionavam para dizer em voz alta”, conta.
Há dois anos, quando se mudou para o Bairro Paraíso em São Paulo, Marília acompanhou manifestações em favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Havia helicópteros sobrevoando a região todo o tempo, algo completamente invasivo. A barulheira do helicóptero começou a me incomodar muito. Passei a prestar atenção nas coisas do cotidiano, no som da geladeira, por exemplo. Chamei de ‘infraordinários’ esses pequenos acontecimentos que compõem nossa vida: acordar, tomar café, levantar o braço”, revela.
No capítulo que denominou de “Prólogo”, Marília se propõe a pensar a linguagem. “Como recortar notícia de jornal e transformar em poema”, diz. “Na parte final de Câmera lenta, tento pensar na escrita, abrir a caixa de ferramentas. Apresento as dúvidas e inquietações do ato de escrever”, afirma. .