“Acho que a palavra que mais falei nessa entrevista foi visceral”, brinca o curador Paulo Miyada, depois de conversar com a reportagem sobre a exposição Canção do sangue fervente, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, que reúne cerca de 200 obras do artista mineiro Pedro Moraleida. A repetição do uso do adjetivo visceral não é por acaso. Para Miyada, o trabalho de Moraleida foi feito como uma espécie de forma de canalização de uma certa fúria e um certo inconformismo.
“Ele faz uma reflexão do que pode ser a liberdade humana, desafia padrões, consensos, convenções, provoca os parâmetros da moral, dos costumes, da religião e da arte contemporânea”, afirma o curador, que organizou a primeira mostra do artista fora de Minas Gerais. “Ele partia de si mesmo, tentando encontrar as amarrações e tentando colocar tudo isso ao avesso, para se provocar e nos provocar.”
Moraleida estudou arte na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tirou a própria vida aos 22 anos, em 1999, mas deixou uma produção intensa e com números que impressionam. Foram mais de mil desenhos e mais de 400 pinturas, além de diversos textos e experimentações em histórias em quadrinhos. Alguns, feitos quando ainda era adolescente, já lançavam críticas ferrenhas à sociedade. “Ele viveu sob um regime de urgência, fúria e intensidade. Lia muito, experimentava muito, com alto nível de inquietude e voracidade”, analisa Miyada. “Sem ter vivido desta forma, seria impossível fazer um trabalho como o que ele fez antes dos 23 anos.”
Todo o trabalho de Moraleida foi organizado e catalogado a partir de uma iniciativa de sua família. Após um período “esquecidas”, suas obras voltaram a circular e ganharam destaque nos últimos anos, com algumas exposições em Belo Horizonte. Para Miyada, o trabalho do artista foi recebido com estranheza à época por ‘ se encaixar nos modelos vigentes. “Os mesmos elementos que fizeram o trabalho dele ser um estranho no ninho, hoje fazem dele uma referência importante, por conta dessa visceralidade em sua obra.”
Para o curador, o momento é ideal não só para expor como para estudar a obra do artista, já que todo o seu trabalho está disponível e foi catalogado por seus pais. “Poucas vezes temos a oportunidade de estudar o trabalho inteiro de um artista.”
A obra de Pedro Moraleida ultrapassa barreiras morais e sociais, sem pudor. As imagens são explícitas, ácidas e provocativas. Por vezes, cruzam a fronteira do escatológico. Para Miyada, as manifestações não são, necessariamente, representações de sentimentos ou desejos do artista. “O trabalho não é literalmente autobiográfico, muitas das obsessões são citações, apropriações, releituras de textos poéticos, cinematográficos ou filosóficos, não necessariamente refletem coisas que ele viveu”, diz o curador. “É uma reflexão fiel às pulsões humanas, se pudessem ser livremente exploradas.”
CAPELA SISTINA O maior dos trabalhos apresentado na exposição é a série intitulada Faça você mesmo sua Capela Sistina, interrompida por sua morte. Nela, o artista apresenta textos e pinturas que criticam formas de poder e símbolos religiosos. Em 2017, a série foi exposta no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e sofreu protestos, que pediam o cancelamento da mostra.
“Muitos dos episódios polêmicos não partiram das obras em si, mas de uma espécie de estado de hipersensibilidade de parte da população. Funcionou quase que por palavra-chave. Se tem sexo, é imoral, e assim por diante”, apónta Paulo Miyada. “Trouxemos a exposição com o cuidado de contextualização, para que não se confunda com um ataque a qualquer crença. Nunca foi a intenção do artista e não seria a intenção de nenhum museu.”
Os textos curatoriais que seguem a exposição explicam as referências de Pedro Moraleida em seus trabalhos, que são as mais diversas, desde textos filosóficos do francês Gilles Deleuze a obras do sergipano Arthur Bispo do Rosário e filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder.
“Faça você mesmo... é o trabalho mais ambicioso de Moraleida. Poderia ter chegado facilmente a mais de 300 pinturas”, acredita o curador. “Tem sua força no conjunto de reflexões poéticas, a gênese segundo o artista, com dilemas e traumas da sociedade, com referências à história da arte, do cinema, da religião e da política.”
Com a exposição no Instituto Tomie Ohtake, a esperança da curadoria é que o trabalho de Pedro Moraleida encontre um espaço na história da arte. “Ele é um referencial importante, que contrasta com tudo que a gente conhece”, afirma Miyada. “Tem um tanto de Bispo do Rosário, um tanto do conteúdo confessional e íntimo de Leonilson, mas com um imaginário mais pop, ligado aos quadrinhos e com uma revolta incontida, com a morbidez e a acidez do final do último milênio, que não se encontra em muitos lugares.” (Estadão Conteúdo)
Trouxemos a exposição com o cuidado de contextualização, para que não se confunda com um ataque a qualquer crença. Nunca foi a intenção do artista e não seria a intenção de nenhum museu”
Paulo Miyada, curador
Paulo Miyada, curador