O artista plástico português Isaque Pinheiro se define como um “fazedor de objetos”. Suas esculturas subvertem o processo criativo do ready made, estratégia desenvolvida e consolidada pelo francês Marcel Duchamp (1887-1968). A prática artística pode ser definida como a utilização de um utensílio fora de seu contexto, passando a ser entendido como arte por determinada razão – como o célebre urinol transformado em A fonte (1917), de Duchamp. Pinheiro, por sua vez, recria aparatos corriqueiros do dia a dia a partir de materiais diversos, ressignificando-os em espaços não usuais.
“O ready made é uma inspiração, considerando que, de certa forma, faço seu completo oposto”, defende o artista, em entrevista ao Estado de Minas. Até março, suas esculturas e xilogravuras em cedro compõem AcorDO Rei, em cartaz na galeria DotArt. A exposição foi idealizada e produzida para o Paço Imperial, no Rio de Janeiro, onde esteve por dois meses, no ano passado. Os trabalhos dão grande escala às cartas de baralho, com diferentes releituras da mais valiosa delas: o rei.
“Sabia que o período expositivo, no Rio, cruzaria com as eleições brasileiras”, conta Pinheiro. “Mais que estudar cada um dos candidatos e tomar alguma posição, quis propôr que as pessoas não ficassem alheias à democracia. Afinal, como dizem, esse é o pior de todos os sistemas, à exceção de todos os outros”, afirma.
O intento permitiu que o artista investisse na xilografia, técnica inédita em sua carreira. “É um processo que permite a separação de cores, criando uma metáfora ao sistema democrático. Só quando todas as cores fossem dispostas em um mesmo plano, consegue-se ter a imagem de um governante pleno”, aponta.
ESPAÇOS
Pinheiro conta que o diálogo com o espaço expositivo é frequente em sua produção. Evocando disputa, poder e realeza, a série foi produzida visando ao diálogo direto com o edifício colonial que fica no Centro Histórico do Rio. Construído no século 18, o Paço serviria, anos depois, de residência à família real na ocasião de sua vinda ao Brasil, em 1808.
“Sempre que sou convidado a expor, penso no que posso levar àquele local. Acontece, muitas vezes, de ideias antigas, que ficavam guardadas em gavetas dentro da minha cabeça, sem contexto certo, se adaptarem à nova proposta”, revela. “A imagem de um rei e o jogo de baralho se casam a uma série de frentes e vertentes que cabiam ao espaço expositivo e ao momento político em que a exposição entraria em cartaz. Espaço e tempo sempre interferem no que faço.”
Neste e em outros projetos de sua trajetória, as formas arquitetônicas chamam a atenção. O artista nega, entretanto, uma disposição em investigar a área por meio de sua arte, mesmo sendo casado com a arquiteta Ana Carvalho. “Não tenho propriamente um interesse pela arquitetura, apesar de lidar sempre com os espaços em que as obras estarão à mostra. Não é uma área em que me debruço ou pesquise. Talvez pense nela de forma mais natural”, avalia.
A escolha de materiais em seu trabalho também não ocorre de forma tão precisa. Assim, Pinheiro costuma fazer uso de grande variedade – de madeira, mármore e ferro a cerâmica, alumínio e aço. “Determino os materiais em função do discurso, da narrativa e das sensações que desejo transmitir. Se quero que uma obra emita sensação de fragilidade, opto pelo vidro e não pelo ferro.”
“Também trabalho com o movimento oposto. Por ser um artista de ateliê e oficina, muitas vezes aparecem resultados interessantes, que não serão os finais, mas, a partir deles, descubro estéticas e plasticidades dos materiais, o que me sugere fazer algum tipo de obra. Funciono dessas duas maneiras: ou o material sugere a obra ou a obra sugere o material”, comenta.
INVESTIGAÇÕES
Aos 46 anos, com duas décadas dedicadas às artes plásticas, Isaque Pinheiro nota reincidências na produção atual. “Mantêm-se um fetichismo pelo objeto e pela tentativa de aproximação entre o fazer e o pensar”, avalia. Suas investigações, entretanto, seguem em constante alteração, com temas que correspondem ao tempo presente.
O artista diz se buscar despertar interesse para a as questões da técnica na arte. “Estou convencido de que o fazer e o pensar na sociedade ocidental estão divorciados. Tento refazer esse casamento, dando importância à parte oficinal do fazer artístico”, diz Isaque. Para ele, as reflexões na arte ganharam grande terreno, enquanto o simples fazer pode, também, revelar elementos físicos e mecânicos capazes de explicar fenômenos sociais. “É fácil quebrar palito com a mão. Se você tiver 20 palitos juntos, será mais difícil. Com 200, talvez não consiga; a união faz a força”, exemplifica.
“Essas diretrizes não são tão lógicas. Entendo a arte como lugar de liberdade e, quando não é assim, deixa de fazer sentido. Não faço tais reflexões de forma consciente, nem sempre sei exatamente o que estou fazendo”, pondera.
Também em sua trajetória, ele identifica evoluções. “Noto que minhas esculturas vão ficando mais refinadas, vou limpando partes desnecessárias. Meu trabalho pode ser explicado como uma espiral, por ser frequentemente cíclico. Crio uma série e, mais tarde, farei outra parecida, que não será a mesma, mas passará ao lado. Todos os meus trabalhos passam pelo que já fiz, mais evoluídos e a partir de outras vertentes de produção artística”, afirma. “Por vezes, algumas obras poderão parecer cartas fora do baralho. Mais tarde, porém, será possível entender sua lógica, que expõe de onde vêm e para onde querem ir.”
ROUBO
Além do trabalho com xilografia, a primeira vinda de sua arte à capital mineira deu ao português outra experiência insólita. Essa, entretanto, bastante adversa. No início de dezembro – quando as esculturas já estavam expostas na DotArt –, 50 trabalhos adicionais foram roubados na Rodovia Presidente Dutra, enquanto eram transportadas de caminhão do Rio para BH. De 45 gravuras em papel, apenas duas, danificadas, foram salvas, além de cinco matrizes de madeira, a partir das quais desenvolveu suas xilogravuras. Os trabalhos resgatados já foram integrados à exposição.
“Tenho muito orgulho do que faço e fiquei profundamente triste por ter uma exposição desmembrada. Quando uma obra desaparece, deixa de cumprir o objetivo para o qual foi criada. Além do prazer próprio, de querer que tal trabalho seja realizado, há um segundo momento, em que as pessoas têm acesso a ele. É quando a arte se completa. Sem ser mostrada, é como se não terminasse, virasse um fantasma”, afirma o artista.
Passadas algumas semanas, Pinheiro já consegue atentar a um outro lado da moeda. “Toda essa história e suas deturpações começam a formar um material que pode ser interessante, inclusive, para trabalhos futuros. Há uma vontadezinha crescendo de reunir toda a informação em volta desse roubo e transformá-la em obra. Não é todo dia que se vive algo assim. Se há uma parte boa, é poder olhar esse episódio como uma oportunidade rara de criação.”
ACORDO REI
Esculturas e xilogravuras de Isaque Pinheiro. DotArt Galeria de Arte. Rua Bernardo Guimarães, 911, Funcionários. (31) 3261-3910. Segunda a sexta, das 10h às 19h; sábado, das 10h às 13h. Até 19 de março. Entrada franca.