O belo-horizontino Wilder Paraizo, o Dedé Paraizo, tem 60 anos. Cantor, compositor e violonista, ele se mudou para São Paulo, há três décadas, em busca de oportunidades profissionais. Desde 2007, faz parte de um grupo musical, curiosamente, mais velho do que ele. “O Demônios da Garoa é uma instituição. Existe há 76 anos e sou o único integrante não paulista dessa história. É uma honra e uma emoção”, gaba-se Dedé, que ingressou no Demônios depois de o quarteto gravar duas canções de sua autoria.
Grupos com muitas décadas de estrada são raridades neste Brasil que não preserva sua própria memória. Assim como o Demônios na Garoa, o Trio Irakitan prossegue nos palcos, enquanto Os Cariocas virou Quarteto do Rio.
No começo da década de 1940, em São Paulo, garotos de 12 a 14 anos começaram a tocar samba despretensiosamente, liderados por Arnaldo Rosa. Eram o Grupo do Luar, cuja primeira formação reunia Arnaldo, Antonio Espanha (tamtam), Benedito Espanha (afoxé), Zezinho (violão tenor) e Bruno Michelucci (pandeiro). A virada ocorreu quando a turma participou de A hora da bomba, programa de calouros da Rádio Bandeirantes. “Eles ganharam. O jornalista Vicente Leporace, que se tornou padrinho do grupo, promoveu um concurso para escolher o novo nome. Um ouvinte, que nunca foi identificado, sugeriu Demônios da Garoa”, conta Dedé.
Na opinião do mineiro, o segredo do sucesso do Demônios da Garoa está na maneira singular de interpretar canções, sobretudo as de Adoniran Barbosa, como Trem das onze e Saudosa maloca. “Arnaldo Rosa inovou na forma de cantar e falar, inspirado no jeito como os engraxates da Praça da Sé, em São Paulo, se comunicavam. Expressões como ‘quais, quais, quais’ deram essa identidade, a coisa paulistana. Se você ouve os primeiros acordes das nossas músicas, já sabe que é Demônios da Garoa”, diz Dedé.
Os integrantes da formação original já morreram. Hoje, o grupo reúne Dedé Paraizo (violão sete cordas), Izael Caldeira (timba), Ricardinho (pandeiro) e Sérgio Rosa (afoxé) – filho e neto, respectivamente, do fundador Arnaldo –, além de Canhotinho (cavaquinho), afastado por problemas de saúde. “O médico disse que em breve ele vai voltar. Mestre do cavaquinho, tem 80 anos e desde 1962 está no grupo. Inclusive, Canhotinho participou da gravação original de Trem das onze”, comenta Dedé.
O grupo incorporou novidades, como a maneira de tocar e a presença nas redes sociais. “A gente tem de se adaptar, mas sem perder o nosso estilo. Hoje, contamos com uma banda de apoio que tem outro neto do Arnaldo Rosa, o Serginho. Usamos mais instrumentos – bateria, baixo e percussão –, mas a tradição vocal permanece. Pais, filhos e netos vão a nossos shows. Não há quem não se empolgue com o Demônios da Garoa. Estamos aí há 76 anos e, pelo visto, não vamos acabar nunca”, avisa Dedé. O grupo está em turnê com Toquinho & Demônios da Garoa – De Adoniran a Vinicius, que deve chegar a BH no meio do ano.
MEL VERDE
O Trio Irakitan está há mais de meio século nos palcos. Criado em 1950, em Natal (RN), por Edson França, o Edinho (violonista, arranjador e cantor), João Costa Neto e Paulo Gilvan Bezerril (harmonia vocal e percussão), o conjunto ganhou esse nome – mel verde, em tupi – do historiador e jornalista Câmara Cascudo.
“Nos anos 1940 e 1950, trios eram muito comuns. Eu mesmo fazia parte do Trio Guarani. Quando o Edinho morreu (ele se matou, aos 36 anos), fui convidado, mas só entrei um ano depois, porque estava em turnê com o Guarani”, relembra Antonio Santos Cunha, o Tony Mell. Aos 82 anos, ele é arranjador, violonista e primeira voz.
O Irakitan estourou na década de 1960, depois de uma temporada no exterior, devido a um disco de boleros. “O trio era muito focado em música brasileira e folclore, mas o público estava carente de boleros. Quando eles voltaram ao Brasil, foram contratados pela Rádio Nacional, a TV Globo da época, e participaram de filmes de sucesso”, diz Tony. A formação mudou, mas ele permaneceu.
Com 50 discos lançados, o Irakitan mantém agenda de shows e tem página no Instagram. Autointitula-se “o maior trio vocal e instrumental do Brasil de 1950 até os dias atuais.” Tony comemora essa longevidade: “Com tanto artista aparecendo todos os dias, acabam não valorizando os mais antigos. Mantemos praticamente as mesmas características da formação original e não paramos de fazer shows. No Brasil, isso é um fenômeno.”
Como o Demônios da Garoa, o Irakitan passou por “modernizações”. A abertura dos shows é praticamente a mesma – Hino ao músico, de Chico Anysio –, mas o teclado “faz-tudo” executa o som de vários instrumentos. “Nosso público principal é gente da nossa época, mas a nova geração tem curtido também”, destaca Tony. Ele trabalha no songbook com as 400 canções gravadas pelo trio. “Esse projeto demanda muito tempo e dedicação, estamos em busca de uma editora para publicá-lo”, conta. Além de Tony, o trio conta com Valmir Maia, de 84, e Hélio Rocha, de 59.
BOSSA NOVA
Em 1942, Ismael Netto criou um quinteto com a alma do Rio de Janeiro, que revolucionou a maneira brasileira de cantar. A primeira formação oficial reunia Ismael (arranjador, primeira voz e violão), seu irmão Severino Filho (segunda voz e percussão), Emmanoel Furtado, o Badeco (terceira voz e violão), Waldir Viviani (percussão e quinta voz) e Jorge Quartarone, o Quartera (quarta voz e percussão). O nome: Os Cariocas.
Os cinco chamaram a atenção pela forma de interpretar bossa nova. Aliás, ao lado de Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto, Os Cariocas apresentaram Garota de Ipanema pela primeira vez. O show histórico ocorreu em 1962, na Boate Au Bon Gourmet, em Copacabana.
A formação mudou ao longo do tempo. Em 2016, com a morte de Severino Filho, último remanescente do quinteto original, o grupo passou a se chamar Quarteto do Rio. A atriz Lúcia Veríssimo, filha de Severino, entendeu que, com a morte do pai, o DNA vocal de Os Cariocas não existia mais.
“A denominação mudou, mas a essência permanece. O Quarteto do Rio conta com três integrantes das últimas formações d’Os Cariocas: eu, na voz e violão, o Neil Teixeira (baixo e voz) e o Fabio Luna (voz e bateria). O Leandro Freixo (voz e teclados) entrou mais recentemente”, explica Eloi Vicente, de 70.
Sobrinho do fundador Quartera, Eloi diz que a grande ousadia do grupo foram a sonoridade e as harmonias mais sofisticadas, motivo de seu sucesso. “Quando eles surgiram, havia uma série de conjuntos vocais no Brasil. Os Cariocas tinha um diferencial: arranjos vocais especiais, com uma voz em um tom mais acima”, defende.
Entre os trabalhos recentes do quarteto está o disco que celebra os 80 anos de Roberto Menescal. Em breve, será lançado álbum com João Bosco, Yamandu Costa e Pedro Miranda. Desde 1994 no conjunto, Eloi diz que nasceu ouvindo Os Cariocas por conta do tio Quartera.
“Como já era músico e conhecia a fundo os arranjos e as músicas, eles me chamaram para substituir o Badeco, que ficou um tempo afastado. Depois, entrei definitivamente na vaga do Edson. Cheguei a cantar ao lado do meu tio”, revela Eloi Vicente.
"Estamos aí há 76 anos e, pelo visto, não vamos acabar nunca"
. Dedé Paraizo,cantor do Demônios da Garoa