Quando Anderson Paz e Silas Leléu, intérpretes do Império Serrano, soltarem os primeiros acordes na Marquês de Sapucaí, no domingo 3 de março, provavelmente a grande maioria do público vai cantar de cor e salteado o samba-enredo da agremiação de Madureira. Isso porque, pela primeira vez na história do carnaval carioca, uma escola de samba traz para seu desfile uma canção de sucesso da MPB. O Império promete levar à avenida um olhar sobre a vida por meio da música O que é, o que é, de Gonzaguinha.
“A gente não alterou nada da letra, da melodia. Só o andamento com a bateria. Queremos falar sobre o que é a vida e não teria nenhuma música que explicasse tão bem essa questão como essa composição”, afirma o diretor de carnaval da verde e branco, Zé Luiz Escafura.
Ele conta que a Viradouro chegou a fazer algo parecido quando, em 2015, apresentou um samba-enredo reunindo duas músicas de Luiz Carlos da Vila. Escafura acrescenta que a única menção ao filho de Luiz Gonzaga no enredo da escola é a sua música e que o desfile não faz um tributo a ele. “Gonzaguinha não estará presente nos carros alegóricos, nas alas. O desfile é sobre a vida, esse questionamento que as pessoas fazem dela.
Uma das preocupações dos integrantes do Império Serrano com essa inovação foi com sua ala de compositores, uma das mais qualificadas e respeitadas do mundo do samba. Uma de suas representantes mais conhecidas, Dona Ivone Lara, que faleceu no ano passado, será homenageada no encerramento do desfile. “Claro que ninguém agrada a todo mundo, mas a maioria ficou feliz (com a escolha da música de Gonzaguinha). O Império tem uma tradição forte, mas também tem a fama de ousar.
FAMÍLIA Alguns dos familiares de Gonzaguinha, como o filho Daniel Gonzaga, estarão presentes no desfile, que será o primeiro do Grupo Especial. Daniel, que é músico e também compõe sambas-enredos, defende que a novidade vai fazer história. “Com todo o respeito que tenho ao Luiz Carlos da Vila, que teve suas músicas adaptadas para a Viradouro, mas nada se compara ao O que é o que é. É uma música muito conhecida, muito utilizada, quase todo mundo sabe cantar. Ela tem um impacto muito forte e tem um formato de samba-enredo. Provavelmente, vai ser o samba mais cantado na Sapucaí. Não desmerecendo os sambas-enredo das demais escolas, mas porque é uma canção muito popular”, afirma.
Daniel acha difícil prever como os jurados vão avaliar a escola, já que samba-enredo é um dos quesitos mais importantes.
Louise Martins, a Lelete, viúva do cantor e compositor, celebra o fato de uma música feita em 1982 – ano em que o Império Serrano conquistou seu último campeonato no Grupo Especial, com o enredo Bum bum paticumbum prugurundum – ser tão atual. “Mais do que nunca, todo mundo quer viver e não ter a vergonha de ser feliz. Gonzaga sempre foi muito à flor da pele”, comenta.
O que é, o que é era uma das faixas do disco Caminhos do coração e nasceu de uma forma inusitada. Gonzaguinha, que morava em Belo Horizonte nessa época, fez uma enquete numa revista semanal e convocou os fãs a responderem à pergunta: ‘O que é a vida?’. “Ele recebeu as mais variadas respostas de todo tipo de gente. De crianças a presidiários.
GOLPE NO SAMBA Mas nem todo mundo é entusiasta da iniciativa da escola de Madureira. O pesquisador e escritor Alberto Mussa, autor do livro Sambas de enredo: história e arte, ao lado de Luiz Antonio Simas, não vê com bons olhos colocar um clássico da música brasileira no lugar de um samba-enredo. Não só porque, segundo ele, não é uma música feita com esse propósito, mas porque pode ajudar a aprofundar ainda mais a crise que os sambas-enredo atravessam.
“Isso não estimula a renovação, a tradição, a memória das escolas e do samba. Os sambas-enredo hoje são feitos por encomenda (convidam um compositor conhecido) ou pelos chamados escritórios. Grupos de oito, 10 pessoas que assinam composições de várias escolas e ajudam a pasteurizá-las. Um compositor mais jovem praticamente não tem espaço para suas criações”, afirma. Mussa avalia que essa atitude partir do Império Serrano é ainda mais grave, por se tratar de uma agremiação com grande tradição na composição.
O pesquisador afirma que chegou a ouvir a nova versão de O que é o que é, mas não aprovou o resultado. Ele explica que, no caso das músicas de Luiz Carlos da Vila que foram aproveitadas pela Viradouro, elas eram originalmente samba, o que não é o caso da composição de Gonzaguinha. “Se já há uma aceleração exagerada das baterias com os sambas-enredo, imagina uma música que não foi feita para um desfile. Ouvi e acho que tem passagens que estão até inaudíveis. A música cantada e tocada num ritmo que não é o dela perde suas principais nuances. E corre sério risco de fracassar”, opina.
O que é, o que é
Gonzaguinha
Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita
No gogó!
Viver
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser
Bem melhor e será
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita
E a vida o que é?
Diga lá, meu irmão
Ela é a batida de um coração
Ela é uma doce ilusão, ê ô!
Mas e a vida
Ela é maravilha ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é?
Meu irmão
Há quem fale
Que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo
Há quem fale
Que é um divino
Mistério profundo
É o sopro do criador
Numa atitude repleta de amor
Você diz que é luta e prazer
Ele diz que a vida é viver
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é
E o verbo é sofrer
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser
Sempre desejada
Por mais que esteja errada
Ninguém quer a morte
Só saúde e sorte
E a pergunta roda
E a cabeça agita
Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita