Mauricio de Sousa teve a chance, muitos anos atrás, de ilustrar os livros do escritor que despertou nele o gosto pela leitura. O convite veio da Brasiliense, editora de Monteiro Lobato (1882-1948) por quase toda a vida, que queria modernizar suas edições – as primeiras são dos anos 1920.
“Não aceitei. Mexer no que eu tinha lido e adorado, que era uma coisa sagrada para mim, seria sacrilégio. Não tive coragem de alterar a obra de Lobato – nem que fosse com um desenho bonitinho”, relembra hoje, aos 83 anos, um dos mais bem-sucedidos autores de obras para crianças do país.
Mas o tempo passou, Mauricio ficou mais seguro e famoso e os herdeiros saíram de cena no começo do ano com a entrada da obra de Lobato em domínio público. E eis que encontramos o pai da Turma da Mônica em seu estúdio, em São Paulo, feliz da vida com o livro que tem em mãos: Narizinho arrebitado. Abaixo do título, seu nome ao lado do nome de Lobato. “Isso não tem preço”, diz, e sorri.
Narizinho arrebitado foi o primeiro livro que Lobato escreveu para crianças, ainda no início dos anos 1920. É nele que o autor apresenta alguns dos personagens que povoariam a infância de gerações e gerações de brasileiros e que no livro que é lançado agora são representados nas ilustrações pela Turma da Mônica: Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, é a Magali; Emília, sua boneca de pano, é a Mônica.
A Editora Girassol optou por fazer uma adaptação do texto que, como escreveu José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, no prefácio, “se preocupou em retirar os pontos negativos”. A tarefa ficou a cargo de Regina Zilberman, pesquisadora, historiadora de literatura infantil e leitora de Lobato desde a infância.
“Buscamos dar um tom contemporâneo, trocando palavras que não são mais usadas porque saíram de moda ou porque tinham uma carga de preconceito”, conta Regina. E aqui ela não se refere apenas ao modo como os personagens tratam Tia Nastácia, mas também a questões de idade e de respeito ao próximo.
“O interessante é que não foi preciso mexer na história. O texto é o mesmo. A integralidade dos conteúdos e da narrativa se manteve. Meu trabalho foi fazer esse ajuste para o contemporâneo. Se Lobato fosse racista, ia ter que mexer mais profundamente, e não foi preciso”, diz.
A pesquisadora lembra que o escritor teve seus momentos de muita circulação entre os anos 1920 e 1970, e então aumentou a produção de livro para crianças e “Lobato foi encolhendo”.
PROTAGONISMO FEMININO Depois veio uma longa briga entre a Brasiliense e os herdeiros do autor, e suas edições ficaram desatualizadas, antigas.
“Agora, em domínio público, ele vai retomar a sua pujança. Vamos ter ofertas de todos os matizes: baratas, caras, longas, curtas, coloridas, em preto e branco, de todo jeito. E vai ter também um revival em outros suportes, como cinema, televisão, HQ”, avalia Regina.
E o que Lobato pode mostrar para essa nossa geração de leitores? “Há coisas muito importantes nele, que são muito atuais e oportunas. Um exemplo: essa presença marcante das mulheres, um protagonismo feminino, na sua obra para crianças. E também a autonomia da criança. Ela tem noção de que pode ser ativa, tomar decisões, arcar com as decisões que ela toma – e isso, ainda hoje, é muito inovador.” (Estadão Conteúdo)
TURMA DA MÔNICA –
NARIZINHO ARREBITADO
• Monteiro Lobato, com ilustrações de Mauricio de Sousa
• Adaptação: Regina Zilberman
• Girassol Brasil
• 64 páginas
• Preço sugerido: R$ 34,90
ENTREVISTA
Mauricio de Sousa, ilustrador, 83 anos
‘Emília era o exemplo que não tive coragem de seguir’
Qual é a sua primeira lembrança de um livro do Lobato?
Caçadas de Pedrinho. Depois, fui lendo aleatoriamente tudo. Meu pai lia Lobato e me introduziu.
Seu personagem preferido?
Lógico que é a Emília. Pela molecagem e irreverência. Para um garoto, isso é um prato cheio. Você quer imitar.
Imitou?
Não, porque era tímido. Emília era o exemplo que não tive coragem de seguir.
A edição não tocou em questões que poderiam ser polêmicas.
Decidimos que o melhor seria fazer um texto limpo das dúvidas que podiam ser levantadas.
Tirando essas questões ou não contextualizando pode parecer que elas não existiam.
Mas aí entramos numa armadilha. Se coloca o livro como era, você, de algum modo, ressuscita o ambiente e assuntos que já morreram talvez por conta das conquistas sociais. A sociedade já não aceita muita coisa há muito tempo. E a gente escolhe: vou trazer de novo coisas que a gente sabe que a sociedade se negou a trazer para cá? Não, vamos acompanhar a evolução dos hábitos. Às vezes, é demorado.
Reler o livro agora causou algum estranhamento que não causou lá atrás?
Para uma família que já sofreu problemas, acho que pode haver um estranhamento e até uma revolta, e eles têm razão de não desejar reler. No meu caso, como não vivi isso, passo batido porque não entendo, não sinto isso. Não sofri as consequências.
As turmas da Mônica e do Sítio já tinham se encontrado, mas agora é diferente: são personagens como os personagens de Lobato.
Já que havia a oportunidade, achei que nós podíamos fazer os personagens se travestirem de personagens de Lobato. Ficaria mais forte. (Estadão Conteúdo).