A marcha dos pinguins, documentário do cineasta francês Luc Jacquet sobre a espécie, foi lançado no Brasil em 2006. Naquele mesmo ano, em alusão às cores dos uniformes dos secundaristas chilenos, esse nome foi usado para definir o movimento estudantil ocorrido no país andino para exigir ensino gratuito e de melhor qualidade. Os protestos foram a inspiração para o roteirista e dramaturgo Guillermo Calderón, dos filmes Neruda (2017) e O clube (2016), escrever a peça Classe.
Fundamentada na relação entre aluno e professor e em questionamentos sobre novas formas de ensino e diálogo entre as ruas e a sala de aula, a peça será encenada em Belo Horizonte pela primeira vez, na montagem do grupo local Mulheres Míticas. A estreia é nesta sexta-feira (8), quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, no CCBB. Em comemoração à data, os ingressos para mulheres serão gratuitos hoje.
A protagonista da história é uma aluna do ensino médio, interpretada por Jéssica Ribas. Diferentemente de seus colegas, ela não foi para a manifestação nas ruas porque considerava ser extremamente importante apresentar um trabalho sobre o budismo. A aluna contracena com um professor que aparece tanto sob identidade masculina, na pele do ator Felipe Cordeiro, quanto feminina, por Luísa Lagoeiro. A inserção da metade feminina no papel do professor faz parte da adaptação do texto pela diretora Sara Rojo, chilena radicada em Belo Horizonte e professora da Faculdade de Letras da UFMG.
“Queríamos um novo jogo, em uma proposta de tentar entender a profissão do professor, nessa estrutura às vezes autoritária, que pode ser exercida tanto pela mulher quanto pelo homem”, afirma Sara. Para ela, “a peça está construída a partir do contexto de luta, do enfrentamento do conservadorismo e da possibilidade de utopia”, mas a professora avalia que esse embate não se dá segundo uma lógica binária. “É mais dinâmico, mais dialético, de forma leve. O espectador percebe que os professores também têm suas utopias, enquanto a aluna, de posições superprogressistas, também tem conservadorismo dentro dela. Não é algo como ‘isso é branco e isso é vermelho’. Dentro do vermelho há outras cores, dentro do branco também”, argumenta.
DEBATE Com experiência na dramaturgia e na docência, Sara Rojo classifica o debate estimulado pela peça como “fundamental” nos dias de hoje, especialmente no Brasil, ainda que o texto original se refira a um contexto chileno de mais de 10 anos atrás. “O professor tem que ter a possibilidade de ensinar e fazer o aluno pensar, sem que haja limitações quanto ao tema. Quando se começa a misturar a religião com educação é complexo. Na biologia, temos Darwin; em outros campos da ciência também há conflitos. O professor tem que ter a possibilidade de definir os temas sem interferência de direção ou de um ministério para promover o pensamento em conjunto, de forma aberta. E isso a sociedade tem que apoiar”, afirma.
Intérprete da personagem central, Jéssica Ribas destaca que a peça reforça as capacidades dos alunos. “O texto de Calderón apresenta essa jovem aluna cheia de sonhos, mas não como uma página em branco, que aceita qualquer coisa que o professor coloque. Ela leva coisas para a sala de aula. No fica esperando que ensinem tudo para ela. Embora seja imatura em alguns momentos, tem coisas consistentes para dizer sobre a juventude e seus anseios. Se o mundo está mudando, por que a sala de aula não deve mudar também?”, questiona a atriz.
Se sua personagem permanece na sala de aula por acreditar na importância daquilo que preparou para dizer aos professores na apresentação, Jéssica Ribas também acredita na força dos estudantes quando lutam por seus ideais. “Esta peça foi escrita no contexto da Marcha dos pinguins, no Chile. Em 2016, aqui no Brasil, a gente também viu isso acontecer, com estudantes ocupando as escolas e brigando por uma educação melhor. Mais do que nunca, precisamos falar sobre isso, a educação é base de toda a sociedade. Precisamos de investimento em ciência e no conhecimento. Vimos as universidades crescendo e, agora, presenciamos um desmonte preocupante delas, assim como das escolas que estão sucateadas, sem carteiras, sem estruturas. Precisamos disso para que os jovens tenham condições igualitárias de chegar ao ensino superior”, diz Ribas.
AUTORIDADE A presença de um professor e uma professora, que propositalmente não deixa claro se a identidade deles é a mesma, teve o intuito de dividir a autoridade entre os dois gêneros. Por outro lado, Sara Rojo ressalta a importância de uma aluna no papel principal. “A ideia de que seja uma aluna é muito importante, porque hoje o número de mulheres que estudam é maior, mas o número de mulheres que realmente assumem a ciência é menor. É uma forma de pensar o que acontece nesse processo. Por que um número tão baixo de mulheres na ciência e em outras áreas do conhecimento, sendo que elas muitas vezes têm melhores notas? É uma oportunidade de pensar sobre a mulher no processo educativo”, diz a diretora e professora.
Com a estreia marcada justamente para o Dia Internacional da Mulher, Rojo destaca que “embora a temática principal não seja a questão de gênero, a peça traz questionamentos nesse sentido”. Após a sessão de amanhã, haverá bate-papo com o tema “Teatro e mulheres”, tendo como convidada a atriz, diretora e vereadora pelo Psol Cida Falabella.
Classe
De: Guillermo Calderón. Adaptação e direção: Sara Rojo. Com Jéssica Ribas, Felipe Cordeiro e Luísa Lagoeiro. De sexta a segunda-feira, às 19h, no Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450, Funcionários), até 18/3. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia). Nesta sexta-feira (8), entrada gratuita para mulheres. Mais informações: (31) 3431-9400.