Nem Saquarema, nem Maresias, nem Florianópolis. A capital do surf no Brasil é Belo Horizonte, pelo menos se o assunto for música. Quem decretou isso foi o “King of The Surf Guitar” (Rei da Guitarra Surf), Dick Dale, que morreu no último dia 16, aos 81 anos. A causa da morte não foi divulgada, mas Dale já havia comentado publicamente que sofria de câncer, diabetes e insuficiência renal. Na robusta lista de composições deixada pelo instrumentista norte-americano, além da cinematográfica Misirlou e do hino Let´s go trippin, existe Belo Horizonte, em homenagem à capital mineira, onde ele se apresentou em 1997.
Se a passagem por aqui marcou o artista a ponto de dedicar à cidade um tema de seu show, a presença do ícone da surf music em BH influenciou fãs do gênero, músicos e agitadores culturais. Celeiro de bandas de surf music, a capital mineira é também sede do principal festival dedicado a essa vertente do rock, ainda que o litoral esteja a centenas de quilômetros de distância.
Dick Dale começou sua carreira no fim dos anos 1950 e experimentou o auge no começo da década seguinte, tornando-se a principal referência no rock instrumental californiano, seara na qual também militavam os Beach Boys, The Ventures, The Lively Ones, entre outros. Trinta anos depois disso, Dick Dale voltou a surfar a crista da onda.
Em 1994, o cineasta Quentin Tarantino lançou o cultuado Pulp fiction, cuja música-tema é Misirlou. O sucesso do filme colocou a surf music em evidência, com o despertar do interesse de uma nova geração.
Um dos presentes era Leopoldo Furtado, que, na época, era um estudante. Hoje médico, produtor musical e dono de cervejaria, Leopoldo mantém uma clara lembrança daquela noite, em especial da surpresa que tomou conta do público quando Dale, então com 60 anos, anunciou no palco que a próxima música era uma homenagem recém-composta a Belo Horizonte. “Ele falou que adorou a cidade. Achou o pessoal muito legal e fez uma música chamada Belo Horizonte. Ele tocou. Todo mundo achou legal, mas ficou meio desconfiado, pensando que ele devia falar isso ‘para todas”, relata.
E-MAIL Nos anos seguintes, Leopoldo Furtado passou a se interessar ainda mais pela surf music. Valendo-se do que a internet possibilitava na época, ele se conectou a outros entusiastas do estilo por meio de um grupo de e-mails, criado com o nome de Reverb Brasil. “Um dia, uns amigos de Curitiba me falaram que ele tocou lá e apresentou uma música chamada Belo Horizonte. Um tempo depois, ela apareceu como uma das faixas do álbum Spacial disorientation, lançado em 2001, o último disco de estúdio dele. Ou seja, a coisa era verdadeira”, conta Leopoldo.
Quando passou a ter um programa sobre surf music na Rádio Autêntica Favela FM, o futuro médico conseguiu entrar em contato direto com o ídolo da guitarra. “Eu mandava e-mail para as bandas, avisando quando tocava uma música delas. Um dia, mandei um para o Dick Dale, contando sobre Belo Horizonte. Malandramente, coloquei meu endereço na mensagem.
Dentro do envelope (que Leopoldo guarda até hoje), havia um exemplar autografado de Spacial disorientation. “Se não fosse o Dick Dale, eu teria um ciclo de amizades totalmente diferente. Teria feito coisas bem menos legais na minha vida. Por causa da surf music, conheci muita gente boa do Brasil e do exterior”, diz Leopoldo Furtado.
Em seu círculo de amigos, muitos tinham bandas dedicadas à surf music, e o próprio estudante participou de algumas, como Frank Simata, Del Tombs e Lava Jets. A boa oferta de BH incluía ainda o The Surf Motherfuckers e o Estrume’n’tal. Motivados pela proliferação dos grupos, Leopoldo e o amigo Daniel Werneck pensaram em criar um festival do estilo na capital mineira. Bastou uma conversa com outro entusiasta da surf music para nascer o Primeiro Campeonato de Surf, em 2001.
“Estavam pipocando bandas do estilo em BH na época. Eles propuseram um festival e nós topamos na hora”, afirma Claudão “Pilha” Rocha, um dos proprietários da casa de shows A Obra, inaugurada alguns dias após o show de Dick Dale na cidade.
A ideia prosperou e até hoje foram 17 edições do festival, que chegou a se mudar para casas maiores em alguns anos, tamanha a procura por parte do público. A programação sempre inclui artistas de outros estados e também de fora do país. “BH virou a capital brasileira das bandas de surf, e isso sempre foi curioso, porque tinha mais do que as cidades praianas.
CENA
Ele lembra que não só o Primeiro Campeonato Mineiro de Surf demonstrava o interesse local pelo estilo. “Além do Dick Dale, outro marco importante foi o show do Man or Astro Man, produzido pela Motor Music (em 1998, também na Trash). Ali a gente viu que havia uma cena forte, consolidada”, lembra o empresário, que, desde então, assistiu de camarote em sua casa de shows ao surgimento de novas bandas e a dissolução de outras. O certo é que o movimento da surf music em BH não parou.
“Não considero mais BH a capital da surf music pela quantidade de bandas. Hoje, outros lugares têm mais. Mas ainda é a capital, porque promoveu uma espécie de popularização do estilo no país, e a Reverb Brasil tem uma responsabilidade muito grande nisso”, argumenta Claudão.
O que começou como uma reunião on-line de fãs se tornou um selo ao longo da última década, por iniciativa de Leopoldo Furtado, que hoje mora em São Paulo, onde comanda o programa Surf Report, na web rádio Antena Zero. “Na Reverb são mais de 20 lançamentos, em CD, vinil e digitais. Quase tudo surf music brasileira, mas também tem banda da Dinamarca e uma da Itália.
“Tudo isso, de alguma forma, foi o Dick Dale quem criou. Não apenas pela surf music, mas porque foi um grande responsável por fazer o rock crescer. Ele participou da criação de amplificadores 10 vezes mais potentes. Antes, a guitarra tinha som de um violão elétrico. Depois dele, passou a ter o som de um canhão. Era um piloto de testes da Fender. Com ele, o rock cresceu de verdade”, afirma..