“Vamos botar de lado os entretanto e partir logo pros finalmente.”
“Tomo posse com as mãos limpas e o coração nu, despido estripitisicamente de qualquer ambição de glória. Nesta hora exorbitante, neste momento extrapolante, eu alço os olhos para o meu destino e, vendo no céu a cruz de estrelas que nos protege, peço a Deus que olhe para nossa terra e abençoe a brava gente de Sucupira.”
“Eu também sou meio socialista. Não da ponta esquerda... Do meio de campo, caindo pra direita!”
Essas palavras são de Odorico Paraguaçu, o excêntrico prefeito da fictícia Sucupira, personagem criado há mais de 50 anos por Dias Gomes (1922-1999) e eternizado na TV por Paulo Gracindo. Elas bem poderiam ser ditas por qualquer político brasileiro dos dias de hoje.
Duas décadas depois da morte do escritor e dramaturgo, sua obra continua mais viva do que nunca. “Os jogos e maneirismos políticos não se alteraram, daí sua atualidade. Odorico Paraguaçu é um líder político cujo discurso é esvaziado de sentido, risível, que ganha apoio por meio de discurso populista, mas não se sustenta enquanto projeto político. Por meio da farsa e do riso, Dias Gomes explora as mazelas da nossa forma de fazer política, que não é recente”, analisa Elen de Medeiros, doutora em teoria e história literária pela Unicamp e professora de literatura e teatro na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A atemporalidade e a contemporaneidade de Dias Gomes também são ressaltadas por Sônia Jardim, presidente do Grupo Editorial Record, responsável pelo selo Bertrand Brasil, que publica as obras dele desde 1994. “Esses livros retratam o microcosmo do Brasil. Os políticos, a sociedade, a Igreja, estão todos ali. Parecem ter sido escritos ontem. Sem contar que ele era mestre em mesclar questões sociais importantes com humor”, comenta.
A editora aproveitou os 20 anos sem Dias Gomes para relançar, com novo projeto gráfico, os clássicos O bem-amado, O pagador de promessas, Sucupira, ame-a ou deixe-a, O santo inquérito, O berço do herói, A invasão e Campeões do mundo. Até dezembro, chegarão ao mercado Odorico na cabeça, Amor em campo minado, O rei de Ramos e As primícias.
Baiano de Salvador, Dias Gomes morou no Rio de Janeiro desde garoto. Com apenas 15 anos, escreveu sua primeira peça, A comédia dos moralistas, que lhe deu o prêmio do Serviço Nacional de Teatro. Um de seus textos mais importantes para o teatro é O pagador de promessas (1960), adaptado para o cinema. Dirigido por Anselmo Duarte, foi o primeiro filme brasileiro a receber uma indicação ao Oscar e o único a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, em 1962.
“O principal legado de Dias Gomes, além de suas inúmeras obras e da Palma de Ouro, é a transmissão de uma visão crítica de mundo por meio de linguagem acessível e divertida ao público em geral. Tanto na literatura quanto na dramaturgia, ele soube tocar em temas relevantes e até então pouco discutidos sem recorrer a construções textuais herméticas ou distantes da realidade popular. Dias toca o público profundamente, seja por meio do riso, como ocorre em O bem-amado, ou da dor, caso de O pagador de promessas”, analisa Vitor Godoi, professor de português, formado em letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Elen de Medeiros enfatiza que Dias Gomes fez parte de um movimento importante do teatro brasileiro, que modernizou a dramaturgia do país. “Ele toma de empréstimo questões concernentes às camadas populares da sociedade, muito pouco exploradas pelo teatro de sua época, e coloca-as em formatos e propostas canônicas, a exemplo do que faz com o herói em O pagador de promessas. Anatol Rosenfeld, importante crítico de nosso teatro, observa a elaboração de um herói popular nessa peça, provocando uma hybris coletiva, quando seu objetivo de entrar na igreja com uma cruz ganha força e os capoeiristas se empenham nessa empreitada. Isso me parece importante, pois ele busca aliar as duas pontas do teatro: entre uma ideia de superioridade da tragédia, sempre elevada, e a cultura popular brasileira, concebendo assim a sua obra mais conhecida”, observa.
De 1944 a 1964, Dias adaptou cerca de 500 textos dramatúrgicos para o rádio, o que lhe trouxe apurado conhecimento da literatura universal. Aliás, foi nos estúdios radiofônicos que conheceu sua primeira mulher, a novelista mineira Janete Clair, com quem teve os filhos Alfredo, Guilherme, Marcos Plínio e Denise. Dias incentivou Janete a escrever radionovelas e, posteriormente, as telenovelas que a consagraram. Ele também se dedicou à teledramaturgia. Criou clássicos da TV brasileira, como O bem-amado, Saramandaia e Roque Santeiro. Em 1991, passou a integrar a Academia Brasileira de Letras.
CENSURA Engajado politicamente, Dias Gomes era filiado ao Partido Comunista. Suas peças foram censuradas pela ditadura militar. Foi o caso de O berço do herói, em 1965. Uma década depois, adaptada para a TV como Roque Santeiro, ela foi proibida no dia da estreia. Em 1985, com o fim do regime militar, a novela finalmente foi exibida, com grande sucesso, pela Globo.
Em 1998, Dias lançou a autobiografia Apenas um subversivo, cujo título remete à frase de Carlos Lacerda a respeito dele. O dramaturgo revela suas ideias políticas, a amizade com intelectuais e fala sobre os casamentos com Janete Clair e com a atriz Bernadeth Lyzio, com quem teve as filhas Mayra e Luana.
“Sempre chamou a atenção a capacidade dele de dialogar com o público de forma direta, honesta e tocante, seja em temas alegres ou profundamente tristes. Fora isso, Dias Gomes sempre teve a coragem de tocar em tópicos espinhosos, caso da crítica à moralidade excessiva de alguns segmentos da sociedade, como mostrado em O pagador de promessas”, pontua o professor Vitor Godoi.
Na opinião da editora Sônia Jardim, Dias comprovou que é possível criar uma dramaturgia sofisticada, de alta qualidade, e agradar ao grande público. “Seu principal legado foi transitar em todas as esferas, da literatura para a dramaturgia teatral, cinematográfica e televisiva. Foi levar um texto da mais alta qualidade para a televisão, tornando-se um dos mais populares autores de novela. Sem contar sua genialidade de escrever sobre tudo isso durante o regime militar, com hipocrisia e humor, sem perder suas convicções políticas”, conclui a presidente do Grupo Record.
No ar, a Rádio Sucupira
Todas as sextas-feiras, a Rádio CBN seleciona um acontecimento político da semana e o transporta para a realidade de Sucupira – seja o atentado contra Jair Bolsonaro, a prisão de Michel Temer ou a troca de farpas entre o presidente da República e o da Câmara dos Deputados. Impressiona como tudo isso se encaixa nas ações e discursos de Odorico Paraguaçu. “Dias Gomes sempre foi um homem ilustrado, capaz de ler os acontecimentos diários e projetá-los em cena. Em grande parte, a atualidade não se difere tanto daquela vivida à época da publicação de O bem-amado. Odorico foi eleito sob a promessa da modernidade na gestão do município, mas era uma figura ligada ao autoritarismo arcaico vigente. Da mesma forma, o Brasil vive hoje um processo de renovação política com quadros identificados como ‘a nova política’, mas que se ligam a projetos conservadores”, observa o professor Vitor Godoi.
CAMPEÕES DO MUNDO
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O BERÇO DO HERÓI
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O PAGADOR DE PROMESSAS
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O BEM-AMADO
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O SANTO INQUÉRITO
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SUCUPIRA, AME-A OU DEIXE-A
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