Quando o escritor moçambicano Mia Couto ouviu falar em João Guimarães Rosa (1908-1967), seu país estava envolto no redemoinho da guerra. Os livros brasileiros não chegavam até lá. Em dado momento, Mia Couto conseguiu um exemplar, ou melhor, uma fotocópia de A terceira margem do rio. E isso demarcou “um antes e um depois” em sua relação com a literatura.
Na próxima quarta-feira (10), o moçambicano estará em Belo Horizonte para falar sobre Grande sertão: veredas, que não é seu livro favorito do autor mineiro. Somente quando foi “chamado”, depois de já ter percorrido toda a obra de Rosa, Mia Couto leu a história do jagunço Riobaldo, de seu imenso amor por Diadorim e do percurso que o levou a concluir que “o sertão é dentro da gente” ou que “o silêncio é a gente mesmo, demais”.
Trata-se de um livro que o moçambicano revisita “regularmente” e sobre o qual ele pretende falar na próxima quarta-feira do ponto de vista do escritor e não de um crítico. O encontro de Mia Couto com seus leitores e os de Rosa em BH faz parte do programa “Caro leitor”, promovido pelo Sesc Palladium. Essa edição será realizada em parceria com a Companhia das Letras, que lançou, em fevereiro passado, sua edição do Grande sertão: veredas, na qual o texto de Rosa vem acompanhado de cinco ensaios críticos, de uma cronologia dos principais fatos da vida de Rosa, de um conjunto de fotos e da reprodução das cartas trocadas por Fernando Sabino e Clarice Lispector a respeito do livro, no ano de seu lançamento (1956).
Além da presença de Mia Couto, cuja obra é editada no Brasil pela Companhia das Letras, que lançou no ano passado seu livro O bebedor de horizontes, último volume da trilogia As areias do imperador, a noite dedicada ao Grande sertão na capital mineira terá também a leitura dramatizada de trechos do livro feita pelo Grupo Miguilim, de Cordisburgo.
Na entrevista a seguir, Mia Couto fala sobre “o divórcio entre a personagem pública” de Guimarães Rosa e sua atuação literária, revela qual é seu trecho favorito do livro e conta que “a leitura de Rosa” o ajudou “a ter outra visão do mundo”.
Gostaria que você comentasse como e quando foi capturado pelo Grande sertão: veredas. Essa edição da Companhia das Letras inclui o comentário de Fernando Sabino para Clarice Lispector (“Custa um pouco a engrenar”) e também o de Davi Arrigucci Jr. (“É um livro capaz de envolver por completo o leitor. Tarda, no entanto a começar”), ambos traduzindo essa ideia mais ou menos corrente de que o Grande sertão é, de início, um livro difícil. Essa foi também sua primeira experiência com o livro?
No início, eu fui como que barrado. Havia uma estranheza que causava esforço. Leio numa espécie de dormência que rejeita o esforço. Coloquei de lado o Grande sertão: veredas e regressei quando, digamos, fui chamado.
Quantas vezes voltou ao livro, depois de ter sido capturado?
Só acabei por ler Grande sertão: veredas quando já tinha lido toda a sua obra. Depois disso, revisito regularmente o texto. Alguém disse que um livro só existe quando se lê mais do que uma vez.
Essa é sua obra preferida de João Guimarães Rosa?
Eu continuo preferindo os contos. Encontro neles uma espécie de busca para chegar ao Grande sertão. Gosto de ver esse percurso, testemunhar essa travessia. Em geral o romance aguenta menos a poesia, pede uma contenção na linguagem poética que o conto aceita melhor. Sendo o material mais leve, a poesia pode pesar muito.
Em sua estante, Grande sertão: veredas está ao lado de que outras obras?
Ao lado das outras obras de Rosa. A minha arrumação (sempre meio caótica) é por autores.
Em 4321, de Paul Auster, há aquele momento bonito, quando o jovem Ferguson se dá conta de que ser escritor é algo valioso. E isso ocorre porque ele percebe que a leitura de um texto é capaz de provocar um sem número de reações em seu corpo. Fico pensando se a leitura de Grande sertão: veredas teve algum impacto que se poderia chamar de definidor de sua relação com a literatura ou com o tipo de escritor que você se dispôs a ser. Teve?
Absolutamente. Existe um antes e depois na minha escrita. Essa marca foi definida pelo encontro com o texto rosiano. Aconteceu quando eu escrevia o meu segundo livro de contos, denominado Cada homem é uma raça. Eu já havia iniciado um processo de recriação linguística de modo a contornar a dificuldade que enfrenta Moçambique (com as suas culturas e línguas africanas) para vestir a expressão literária numa língua não africana. Comecei este processo sem conhecer Guimarães Rosa. Foi um angolano, o Luandino Vieira, que me inspirou. Depois, este angolano confessou que ele mesmo tinha sido encantado por Rosa. Fui à procura do autor brasileiro. Mas nós estávamos em plena guerra civil e não havia trocas entre os nossos países. Até que me chegou, por via de uma fotocópia, A terceira margem do rio. Vinha assim, avulso e descolorida. E isso foi um sismo, um sismo sem chão. Quando comecei a escrever o Cada homem é uma raça eu já era outro.
Se você se visse privado do livro e tivesse que escolher apenas uma passagem de Grande sertão: veredas para guardar com você, qual seria?
“A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão.”
Em seu poema-despedida, Carlos Drummond de Andrade diz: “Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar”. Na sua opinião, o que é mais misterioso em João Guimarães Rosa e qual foi a melhor homenagem que já fizeram a ele?
Eu penso que o mais estranho em Rosa é o divórcio entre a personagem pública que ele sempre foi (um funcionário que prestou serviços no serviço de fronteira) e o autor que rasgou fronteiras não apenas na escrita mas no método de pensarmos. Há na sua escrita uma proposta metafísica altamente subversiva que contrasta com a sua vida recatada e ordenada.
Como pretende conduzir seu encontro com o público de Belo Horizonte? Que tipo de abordagem do livro você fará?
Eu não sou da academia. Se sou da literatura é por um acaso. Vou falar como escritor, falar de como sentir é um outro modo de pensar, vou expor o modo como me abalou profundamente a leitura de Rosa e me ajudou a ter outra visão do mundo.
Chegou a ver a instalação cênica de Bia Lessa a partir do Grande sertão: veredas? O que achou? Há alguma obra derivada do livro que também tenha conquistado você?
Não vi, infelizmente a obra de Bia. Grande sertão: veredas é daquelas obras altamente inspiradoras mas que apresentam o desafio do tipo “quanto mais distante, melhor”.
CARO LEITOR
Mia Couto comenta Grande sertão: veredas. Leitura de trechos do livro pelo Grupo Miguilim. Quarta-feira (10), às 20h, no Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Os ingressos deverão ser trocados por um quilo de alimento não perecível, a partir do meio-dia da própria quarta-feira, com o limite de dois ingressos
por pessoa.