O nome do filme não poderia ser mais atual – O lodo –, que, à primeira vista, pode remeter a várias tragédias: as socioambientais em Minas, como Brumadinho e Mariana, aos escândalos de corrupção no país, ao clima de ódio, principalmente nas redes sociais, ou ao massacre da verdade e da esperança. Mas o título vai além dessa mórbida coincidência, avisa o cineasta Helvécio Ratton, diretor do longa rodado em Belo Horizonte e baseado no livro homônimo do mineiro Murilo Rubião (1916-1991), escrito em meados do século passado. O lançamento do “terror psicológico” está previsto para 2020.
“Rubião era um mestre do absurdo. Tem semelhanças com Kafka (Franz Kafka, 1916-1991), autor de A metamorfose, uma história muito maior do que um homem transformado em inseto.” No caso de O lodo, portanto, há profundezas sombrias da alma humana à procura da luz do sol e isso vira cinema, no conflito entre os personagens Manfredo, funcionário de uma companhia de seguros, e o médico dr. Pink.
“Trata-se de uma história universal e atemporal”, assinala Ratton. O lodo vai mostrar a busca de Manfredo para a cura da depressão e o encontro com o médico que insiste em conhecer o seu passado. “Mas há algo que Manfredo não deseja revelar e, assim, abandona o tratamento. O dr. Pink passa, então, a persegui-lo, e a vida do funcionário da companhia de seguros se torna um inferno.”
Na última terça-feira, o diretor e sua equipe abriram ao Estado de Minas o set das filmagens, que vão durar cinco semanas. “Já se passaram duas e meia, agora vem o mesmo tanto e termina”, ele revela, calmamente, antes de dirigir, no consultório com divã, muitos livros e objetos de arte, os atores Eduardo Moreira (Manfredo), protagonista, e Renato Parara (dr. Pink). A locação escolhida é bem cinematográfica: a Casa MAC, misto de centro cultural e espaço de eventos, no Bairro Cidade Jardim, na Região Centro-Sul da capital. Na fachada, nos degraus da escadaria de entrada e para onde se olhe há versos e estrofes inteiras num convite de boas-vindas.
“Belo Horizonte é uma cidade com uma luz impressionante, ótima para filmar. Teremos mais duas locações e muitas cenas nas ruas da capital”, projeta o diretor, na varanda do imóvel, lembrando que se trata de seu nono longa, neste dividindo o roteiro com L. G. Bayão. Desta vez, há uma particularidade que o motiva ainda mais.
TRUPE MINEIRA Todo o elenco é mineiro, e também a maior parte da equipe. Do Grupo Galpão, são seis atores: Eduardo Moreira, Inês Peixoto,, Paulo André, Fernanda Vianna, Teuda Bara e Antônio Edson. “E temos Renato Parara, intérprete do dr. Pink, Mário César Camargo (chefe) e Cláudio Márcio (o menino)”. Completam o time Rodolfo Vaz, Samira Ávila (secretária), Maria Clara Strambi (jovem Epsila), Adyr Assunção (farmacêutico) e Thaís Mazzoni (Ana).
A direção de fotografia está a cargo de Lauro Escorel. “Estou encantado com o elenco e com a entrega do Eduardo, a construção do personagem”, ressalta Ratton.
Ele dá uma pausa na entrevista para, em poucos segundos, voltar ao cenário para dirigir Samira Ávila e Eduardo Moreira. Confessa que, quando está filmando, fica completamente alheio ao mundo real. “Estou há dois anos trabalhando nesse roteiro, estudando Rubião, enfim, mergulhado. Na ficção, posso me recolher desse mundo em que vivemos e que submerge no lodo”, diz o cineasta.
O longa-metragem tem recursos captados via edital do governo de Minas, Ancine e Lei Estadual de Incentivo à Cultura. A produção é assinada pela Quimera Filmes, e a distribuição será da Cineart.
“É uma experiência única, forte”
São 11h e a equipe está gravando desde as 7h, na terça-feira cinzenta e chuvosa. Silêncio completo no set para o ensaio. Sentada à sua mesa, com um penteado meio retrô, a secretária fala ao telefone com Manfredo para gravação do áudio. Repete a fala uma, duas, três vezes. “Não é senhor Pink, é doutor Pink”, acentua o diretor. Samira se desculpa, corrige e logo em seguida todos estão prontos para filmar. Antes, um detalhe importante: o maquiador confere o monitor, vê que a atriz está transpirando e corre com um lenço na mão para secar o rosto. Rodando!
Terminada a cena, é hora de gravar o som ambiente. Silêncio sepulcral. Momento para o repórter temer que até um ruído da caneta no bloquinho de anotações interfira na sonoplastia. Quase 13h, e a produção ainda está compenetrada diante dos monitores, pontuando suas observações e comentando o trabalho da manhã.
Pouco antes almoço, Eduardo Moreira explica que se trata de seu primeiro protagonista no cinema, embora tenha participado de cerca de 20 filmes. “É uma experiência única, forte e interessante, com grandes desafios. Exigiu muita leitura com todos os atores”, diz Eduardo. No filme, ele contracena com a mulher, Inês Peixoto, no papel de sua irmã. “Não posso falar mais, senão vira spoiler”, brinca. Para o intérprete de Manfredo, o lodo do título do filme pode representar, nesses tempos atuais, “ódio, perseguição, delação e outros males disseminados, em especial, nas redes sociais”. Satisfeito com a “equipe coesa e a consonância forte” no set, Eduardo revela que anda até esquecido de “que dia é”.
OBJETIVIDADE Renato Parara elogia o ritmo da filmagens. “Ratton é objetivo e rápido. Criativo pra caramba. E é um privilégio trabalhar com os atores do Galpão, com o Escorel, e com esse texto que fala de absurdo e traz a história para hoje.” Depois da conversa, os dois atores e o diretor vão para o consultório do dr. Pink. Ao fim, o repórter provoca Parara em tom de brincadeira. “Oi, doutor, posso deitar aí um pouquinho e contar meus problemas?” Eduardo ri e não perdoa: “Vai não... O preço da consulta desse doutor é muito alto”.
Para terminar a locação na Casa MAC, ouve-se a voz do diretor, que tem em seu currículo, entre outros filmes, Batismo de sangue, Menino maluquinho, Pequenas histórias, O segredo dos diamantes. “Encerramos aqui de forma muito linda!”. Agora, contagem regressiva para a conclusão das filmagens.
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