Sozinho, sentado no chão da Casa de Apoio, Henrique cantarola a letra do forró Tô na sua saia: “Quando você me olha eu fico encabulado/ Meu coração dispara, eu fico do teu lado/ Cerveja pra ver se eu te esqueço/ Mas acho que não te mereço/ Cerveja pra ver se eu te esqueço/ Mas se fecho os olhos te vejo.”
A mulher de Henrique e o bebê do casal ficaram no lugar de onde ele fugiu. Mas não é um mal de amor que o deixa com o coração apertado e o empurra para longe da família. Quando essa cena surge em Chuva é cantoria na aldeia dos mortos – longa de Renée Nader Messora e João Salaviza, em cartaz no Cine Belas Artes, em BH –, o espectador já sabe que Henrique tenta escapar é do destino que, após a morte de seu pai, o convida a ser pajé.
“Quando a gente fala que há 1 milhão de indígenas no Brasil, a gente esquece que cada uma dessas pessoas tem uma história pessoal, íntima”, diz Salaviza, observando que o cinema brasileiro também tem o hábito de “tomar a parte pelo todo” e se esquecer “das individualidades” ao abordar temáticas indígenas. Era isso que ele e Messora queriam evitar nesse seu longa-metragem filmado com os krahô na aldeia Pedra Branca, no Tocantins, e na cidade de Itacajá.
Henrique é o “nome branco” que identifica o protagonista na segunda metade do longa, quando ele deixa a aldeia e tenta viver na cidade. Em Pedra Branca, ele é Ihjãc, que ouve do pai, já morto, o pedido para que faça o ritual de encerramento do luto. Um outro chamado, para que se torne pajé, atormenta Ihjãc. Com os pensamentos desordenados e o corpo enfraquecido –“Está quente, mas não por fora; por dentro” –, ele busca ajuda no posto de atendimento médico aos indígenas na cidade mais próxima da aldeia, mas vai disposto a ficar por lá, até que a convocação para tornar-se pajé seja esquecida.
CURSO O ponto de partida para o roteiro de Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, conforme conta Salaviza, foi uma experiência semelhante que os diretores testemunharam, enquanto ofereciam ao grupo de krahôs batizado de Guardiões da Cultura um curso de capacitação em produção audiovisual. Um dos integrantes da oficina se sentiu atingido pelo feitiço de um pajé. “Ele estava convicto de que ia morrer se ficasse na aldeia e foi para a cidade. Acompanhamos isso muito de perto”, diz o cineasta.
Com o passar do tempo, quanto mais autonomia os Guardiões da Cultura ganhavam para produzir seu próprio material, a importância da presença do casal de cineastas diminuía. Salaviza e Messora tiveram o desejo de propor aos krahô um longa-metragem, mas achavam que “a forma justa de fazer isso seria mais horizontal”, um modo que permitiria aos cineastas “não ir filmar com certezas, chegar convicto e usar a realidade e aquelas figuras como meras marionetes que provam a sua teoria”.
A história do indígena que se refugia na cidade lhes pareceu especialmente interessante porque “falava muito desse entre-mundos entre a cultura krahô e o apelo do exterior”, afirma Salaviza. “Por outro lado, esse entre-mundos que o xamanismo convoca – de passar a ter a capacidade de encontrar os mortos e os espíritos – é um processo muito doloroso para quem recebe esse chamado. Era uma situação muito complexa e nos colocava muitas questões.”
A ideia de escalar para o papel o guardião da cultura que viveu um dilema entre a aldeia e a cidade não ocorreu aos cineastas. “A gente nunca pensou em filmar com uma pessoa que passou por isso, por essa situação traumática. A gente não acha que o cinema pode tudo. Não concordo que você possa matar pessoas para fazer um filme. Amo os filmes de Herzong, mas não acho que uma imagem valha tanto”, diz Salaviza.
O peso do papel de pajé fica claro para o espectador num diálogo entre Ihjãc e seu tio, que comenta sobre tempos difíceis que atravessou pela ação de pajés e cita que, enquanto alguns pajés agem com generosidade, outros usam sua condição de influência e autoridade para propósitos perversos.
No filme, sempre que os krahôs estão em Pedra Branca, eles conversam em sua própria língua. Esse é um dos aspectos que exemplificam “o terreno ambíguo, pantanoso, entre nosso olhar e o deles” no qual os cineastas se moveram, procurando empreender “constantemente uma negociação estética e poética” para “fazer esse filme que tem traços da realidade sempre invadindo o quadro”, conforme diz Salaviza.
NEGOCIAÇÃO “Discutíamos a ideia de uma cena, o rumo mais ou menos que a gente achava importante que ela seguisse e propúnhamos. Às vezes, era o próprio Ihjãc ou outra pessoa que dizia que não fazia sentido, ou que faltava outro personagem. A coisa ia sendo negociada, conversada a cada momento”, conta o diretor.
Uma vez que a câmera estava ligada, ela captava em cada cena “uma convicção, um gesto, umas palavras que são deles”, diz Salaviza. Sem ser fluentes na língua krahô, os cineastas não teriam como “controlar a precisão e as nuances discursivas” e apenas depois de ter o filme pronto se deram conta de que o resultado da relação que se estabeleceu entre eles e os personagens denota que, “de alguma forma, é como se existisse um pacto e uma confiança mútua de que o filme fala para dentro e para fora”.
Na tradução dos diálogos, Salaviza e Messora tiveram que tomar “duas decisões mais complexas” e acabaram optando por não verter para o português o vocábulo mecarõ e os cantos. No caso do primeiro, o diretor explica que é uma palavra “polissêmica, intraduzível”. Ou melhor, “a tradução é muito vasta. Ela pode ser usada no sentido de ‘eu encontrei o mecarõ do meu avô, referindo-se ao espírito; só que o significado de espírito na cosmogonia dos krahô é diferente daquele da cultura judaico-cristã ou das religiões de matriz africana”, pontua.
“O mecarõ pode também ser sua própria imagem na água, ou mesmo a imagem numa fotografia. Ele remete à ideia de duplo, de tudo o que é um duplo seu, mas não é só uma extensão sua, tem uma agência.A gente decidiu não traduzir essa palavra para não empobrecer seu significado.” No caso dos cantos, explica Salaviza, os krahôs usam “uma espécie de língua ritual, uma língua antiga, não mais usada no cotidiano, apenas na música. Os próprios velhos, quando cantam, têm muita dificuldade em traduzir para nós aquilo que estão cantando. A gente achou que corria sério risco de empobrecimento da cantoria”.
MASSACRE A sutileza que Chuva é cantoria na aldeia dos mortos dedica ao registro desses aspectos da cultura krahô está presente também na abordagem do “cerco ideológico” que eles enfrentam por parte da “santíssima trindade formada por latifundiários, igreja, capital”, nas palavras de Salaviza.
Exemplos: é por um fio puxado pela memória infantil de um membro mais velho da aldeia que surge o tema do massacre de que os krahôs foram vítimas; a animosidade com os comerciantes brancos é citada de passagem pela sogra de Ihjãc, que desiste de comprar um facão novo, para não ter que ouvir reclamações – “Minha conta tá grande. O dono da venda vai falar ruim comigo”. É ela também que identifica como sendo “Beijo Quente, o que todo mundo está usando” o esmalte com que Kôtô, mulher de Ihjãc, cobre as unhas dos pés.
O tom delicado presente no filme está associado, na opinião de Salaviza, à relação anterior que ele e Messora têm com os krahô. “Na hora de filmar, foi uma coisa bem mais intuitiva, mas tem a ver com respeito, quase um pudor, não no sentido judaico-cristão. A Renée conhece o Ihjãc desde que ele era uma criança de 8 anos. Se eu for fazer um filme com a minha filha, com minha mãe, com meu melhor amigo, sei mais ou menos no que posso tocar.”
Exibido para os krahôs e para indígenas de outras etnias, Chuva é cantoria na aldeia dos mortos não foi unanimidade, conta Salaviza. “Mas ninguém se sentiu desconfortável ou desrespeitado pelas imagens.” Para um casal de cineastas atento à capacidade do cinema de “repercutir os mesmos mecanismos de dominação” que muitas vezes denuncia, esse parece um troféu maior do que o Prêmio do Júri presidido por Benicio Del Toro na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, em maio passado.