Em maio de 2019, a banda sul-coreana BTS cantou para 90 mil pessoas em São Paulo. Cambistas chegaram a oferecer um ingresso por inacreditáveis R$ 9 mil. Nada mal para o grupo que havia atraído, cinco anos antes, modestos 1,5 mil fãs a seu primeiro show brasileiro.
O tsunami K bate com força no Brasil – e não se limita a boy bands como o BTS. Séries de TV produzidas na Coreia do Sul, os k-dramas ocupam cada vez mais espaço em plataformas como a Netflix. Desde o início dos anos 2000, o tamanho da indústria televisiva coreana triplicou. Só a exportação de k-dramas rende US$ 240 milhões por ano ao país, correspondentes à metade dos recursos movimentados pelo setor. As "big three" da televisão por lá são as emissoras KBS, MBC e SBS.
A pesquisadora Daniela Mazur, que há 11 anos estuda a TV asiática, garante: a onda veio para ficar. Em 2014, apenas cinco títulos do gênero eram oferecidos pela Netflix no Brasil. Hoje, beiram 140, entre séries, programas e reality shows. Doutoranda em comunicação e mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ela faz parte do Asian Club, centro ligado ao curso de estudos de mídia da instituição.
Além de k-dramas, a Netflix exibe doramas japoneses e atrações da China, Taiwan, Cingapura e Tailândia. Produções do gênero estão também em cartaz no Viki e no Kingdom, serviços de streaming colaborativo cujas legendas em português são feitas por fãs.
'Água com açúcar' revigorado
O k-drama adapta o velho "água com açúcar" ao século 21. A fórmula bebe na fonte do melodrama, com triângulos amorosos, o clássico embate entre o bem e o mal, vilões atormentando casais apaixonados, explica Daniela.
As cenas de amor de boa parte dessas atrações soam ingênuas aos brasileiros. Casais nus são raros. Há muitos beijos na boca – comportados para nossos padrões. É bom lembrar: demonstrações de afeto, na Ásia, não são "performances públicas" como no Brasil.
K-dramas, doramas e afins têm o seu DNA particular. Não copiam atrações ocidentais, embora haja séries derivadas de Criminal minds e Orange is the new black, por exemplo. A influência do know how americano é fato, mas Daniela Mazur destaca que a dramaturgia asiática se conecta profundamente à realidade local.
Exemplo disso é a quantidade de séries voltadas para o universo familiar e laços comunitários ('Responde 1994' e 'Responde 1997' são k-dramas clássicos). A forte ligação da sociedade oriental com o mundo do trabalho tem imenso destaque. 'White nights' e 'Batendo novamente' expõem a corrupção no meio empresarial em meio a tramas românticas. No remake chinês de 'Jardim de meteoros', a paixão de dois jovens é ameaçada pelo jogo de poder no conglomerado do qual o garoto é herdeiro.
O culto à educação e à tecnologia, marca registrada do capitalismo asiático, é onipresente. Prova disso são a série chinesa 'Love 020' e a coreana 'Paixão imprevista'. A gastronomia oriental, que virou cult, tem destaque. Chefs protagonizam histórias românticas em 'The perfect match','Oh my ghos't e 'Amor culinário'. Mas nem só tramas de amor compõem a grade. Há séries médicas, policiais e sobre política.
Farta linha de k-dramas reúne sagas históricas. Em 2018, a Netflix lançou a superprodução 'Mr. Sunshine – Um raio de sol', abordando a luta da Coreia contra a opressão japonesa na virada dos anos 1800/1900. Custou US$ 36 milhões e é protagonizada por Lee Byung-hun, ator dos filmes 'G. I Joe', 'Red 2' e 'Sete homens e um destino'.
A hallyu está longe de ser "coisa de adolescente". Em 2015, o canal Rede Brasil exibiu 'Happy ending – O caminho do destino', a estreia do k-drama na TV aberta do país. Em sua pesquisa, Daniela Mazur descobriu que essa série caiu no gosto de mulheres com mais de 40 anos, insatisfeitas com o hiperrealismo das novelas brasileiras, saturadas de cenas de violência e overdose de sexo. Elas disseram sentir falta de romantismo, do entretenimento leve, da nostalgia de tempos menos estressantes.
Novelinhas voltadas para jovens – estreladas por belos atores e atrizes, vários deles cantores de k-pop – alimentam uma profusão de animados blogs e páginas de fiéis fãs no Brasil.
Fenômeno feminino
O protagonismo do elenco feminino chama a atenção nos k-dramas. "Noventa por cento dos autores de séries coreanas são mulheres", diz Daniela. Machismo, misoginia, intolerância ao homossexualismo perpassam essa teledramaturgia. Porém, a pesquisadora informa que muitos roteiros abordam avanços comportamentais na Ásia. A garota de 'Responde 1997', por exemplo, mora com o namorado e fica grávida antes de se casar, enquanto o personagem gay é tratado sem estereótipos.
Em 'Mr. Sunshine', a heroína se torna guerrilheira para libertar a Coreia. Fica longe do amado – e ele apoia essa decisão. 'Romance is a bonus book' traz uma mulher de quase 40 anos, divorciada e mãe de uma adolescente, enfrentando o preconceito do mercado de trabalho. 'Something in the rain' questiona rígidos padrões familiares e dá direito à balzaqueana de se apaixonar por um jovem. Em 'Strong girl Bong-soon', a força está numa doce garota de Seul, que aplica homéricas surras em vilões.
Daniela Mazur também chama a atenção para os "k-homens". "Os protagonistas são um contraponto à masculinidade tóxica das novelas brasileiras Carinhosos, sensíveis e românticos, eles expressam a delicadeza oriental", observa. Aliás, essa "masculinidade suave" não se limita à ficção. Jovens coreanos cuidam da pele, usam cosméticos e maquiagem. "É um homem mais soft, se você comparar com o macho padrão das novelas brasileiras e turcas", diz a pesquisadora.
"O futuro é asiático"
Na opinião de Daniela Mazur, k-dramas e produções asiáticas instigam o espectador a repensar a própria maneira de ver o mundo. Essa produção oferece olhares baseados em construções culturais diferentes da ocidental, mas não inferiores. Para Daniela, já não cabem mais clichês pejorativos associados ao Oriente, tachado de "excêntrico" e "estranho" – quando não de "perigo amarelo"."O futuro é asiático", enfatiza a pesquisadora da UFF, citando o vigor econômico e geopolítico da China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura, entre outros exportadores de dramas para a TV. "Não dá mais pra ficar nesse papinho de Oriente exótico. É preciso desconstruir esse discurso", conclui Daniela Mazur.
K-DRAMAS
US$ 240 milhõesExportação anual de atrações pela Coreia do Sul
100
Atrações produzidas por ano
70%
Das exportações vão para a Ásia
MARATONANDO
» RESPONDE 1994 E RESPONDE 1997As duas comédias românticas mostram o cotidiano de famílias de classe média sul-coreanas em diferentes períodos da década de 1990. Em 1997..., jovens se veem às voltas com o amor, a escola e desafios da vida adulta, enquanto adultos driblam as dificuldades da crise econômica
» ROMANCE IS A BONUS BOOK
Publicitária deixa a carreira para cuidar da família, é abandonada pelo marido e não consegue voltar ao mercado de trabalho. Na miséria, tem o apoio de um amigo apaixonado por ela. Ambos trabalham numa editora. O amor pelos livros é um dos charmes da série
» JARDIM DE METEOROS
Inspirada em mangá japonês, ganhou versões em vários países. A Netflix exibe o remake chinês de 2018. Garota pobre ingressa na universidade e convive com quatro milionários. Por meio dela, eles questionam os próprios preconceitos. Um deles se apaixona pela moça, mas enfrenta a oposição de sua mãe, magnata de poderosa multinacional
» SOMETHING IN THE RAIN
Balzaqueana se apaixona por um jovem rapaz, amigo do irmão. A mãe não aceita a relação, inferniza a vida da filha e a situação abala o relacionamento do casal. O drama romântico também aborda o assédio sexual no ambiente de trabalho
» MR. SUNSHINE: UM RAIO DE SOL
Drama histórico. Garoto escravo, cujos pais foram assassinados a mando do chefe de um clã, foge para os EUA. De volta à Coreia como capitão da Marinha americana, apaixona-se por uma jovem aristocrata que se torna guerrilheira para libertar seu país do domínio japonês