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João Gilberto: Veja como o cinema retratou o pai da bossa nova

De uma ponta bem-humorada no longa de ficção Copacabana Palace (1962) ao documentário em que nunca aparece, o cinema fez de João Gilberto um personagem raro e intrigante, assim como era o artista


21/07/2019 06:00 - atualizado 21/07/2019 07:37
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A história de como o público acordou para ouvir o pai da bossa nova e seu violão está contada no documentário O barato de Iacanga
A história de como o público acordou para ouvir o pai da bossa nova e seu violão está contada no documentário O barato de Iacanga (foto: Fotos Mario Luiz Thompson/Canal Curta/Divulgação)

Iacanga, interior de São Paulo, madrugada de 6 de junho de 1983. Com a chuva e o frio, parte do público do Festival das Águas Claras, na Fazenda Santa Virgínia, havia se recolhido em suas barracas. Eram quase 6 da manhã de uma segunda-feira, quando João Gilberto subiu ao palco. O público – hippies, como a imprensa destacou na época –, pouco a pouco foi despertado pelo som de João e seu violão. Depois de um silêncio completo, a plateia começou a acompanhá-lo. Wave (Tom Jobim) é uma das canções que João executa durante uma hora de apresentação.

O barato de Iacanga (2019), documentário de Thiago Mattar, recupera a história do Woodstock paulista,  que teve quatro edições numa cidadezinha qualquer (12 mil habitantes em 2014, segundo o IBGE). O ano mais célebre do festival foi precisamente o de 1983, pela improbabilidade de ter João Gilberto como atração de encerramento. O show seria realizado durante a noite, mas dá para imaginar os problemas técnicos que o evento enfrentou e a consequente dificuldade de colocar o notório perfeccionista no palco.

O filme de Thiago Mattar é um dos exemplos de como o cinema e a literatura se aproximaram do pai da bossa nova – morto aos 88 anos, no último dia 6 –, com a expectativa de desvendar o mistério por trás de um artista que não queria ser encontrado. O resultado compõe um retrato fragmentado e inconclusivo, bem de acordo com a personalidade reclusa de João Gilberto e a singularidade de seu talento.

Lançado em abril passado, no festival É tudo verdade, O barato de Iacanga tem circulado por outras mostras no país – no mês passado, foi o filme de encerramento do CineOP, em Ouro Preto. Coproduzido pelo Canal Curta! e pela BigBonsai, o título deverá ser lançado no canal pago até o fim do ano. Primeiro longa-metragem de Mattar, O barato de Iacanga surgiu por meio de uma história pessoal – a família do realizador é de Iacanga, e seu pai frequentou o festival.

João Gilberto aparece em não mais do que cinco minutos da hora e meia do documentário. Além do momento do palco, o músico é visto dirigindo um carro no meio da lama. Mattar reconta a saga que foi convencer JG a se apresentar no Festival das Águas Claras, por meio de depoimentos dos produtores do evento. Naquele 1983, as demais atrações eram Jorge Mautner, Sandra de Sá, Raul Seixas e Erasmo Carlos.

EXIGÊNCIAS “Naquela época, os produtores do festival estavam se profissionalizando, tanto que o evento teve uma estrutura grande. E o maior desafio dos produtores foi convencê-lo a tocar ao ar livre”, conta o diretor. O evento seria televisionado pela Band. Conseguiram, de acordo com Mattar, até que João Gilberto gravasse uma chamada para o canal (material hoje perdido). Uma das exigências que ele fez para participar do festival foi um carro para ir do Rio de Janeiro a Iacanga dirigindo – 791 quilômetros separam as duas cidades. “Só que ele não tinha habilitação, então um produtor foi de copiloto durante o trajeto.” Como até o final houve a dúvida sobre sua apresentação, no cartaz do festival só havia João Gilberto como participação especial.

A participação se transformou em um show de uma hora, que está devidamente guardada nos arquivos da Band. “Surpreendentemente, o material está em ótimo estado, ainda que precise de digitalização completa e de uma nova mixagem de áudio”, diz Mattar. Dois meses depois do show de Iacanga, João Gilberto, que até então não tinha se apresentado ao ar livre, foi uma das atrações do festival Bahia de Todos os Sambas, que ocorreu no Circo Massimo, em Roma – durante nove dias, também apresentaram-se Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil.

Na época, os cineastas Leon Hirszman e Paulo Cézar Saraceni registraram 36 horas de imagens, condensadas em 1h40 do documentário Bahia de todos os sambas (1996). O lançamento tardio foi em decorrência de brigas na Justiça (os produtores do show queriam também produzir o filme), falta de dinheiro e as mortes de Hirszman (1938-1987) e do italiano Gianni Amico (1933-1990), que idealizou o filme.

Outro registro importante é o do curta Brasil (1981), em que Rogério Sganzerla (1946-2004) acompanhou as gravações do álbum homônimo de João Gilberto – o disco foi gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. “Todos os três filmes têm imagens colhidas no início dos anos 1980. Neles, vemos como João Gilberto estava feliz naquele momento”, observa a jornalista Maria do Rosário Caetano, especialista em cinema brasileiro, que chama a atenção para o fato de que, em Brasil, o cantor também aparece ao volante, uma de suas paixões.

Além desses três documentários, Maria do Rosário destaca um filme de ficção, material raro (mas disponível no YouTube) dos anos 1960. Coprodução ítalo-franco-brasileira, Copacabana Palace (1962), do cineasta italiano Steno, é uma comédia que acompanha diferentes personagens no carnaval carioca, tendo o famoso hotel do título como pano de fundo. Um elenco italiano (Sylva Koscina e Walter Chiari são os protagonistas) se mistura com atores brasileiros, como Tônia Carrero e John Herbert.

O que importa nesse filme é um registro de quatro minutos. Na praia, assistimos a Luiz Bonfá, João Gilberto e Tom Jobim cantando Canção do mar (Bonfá e Maria Helena Toledo) para três aeromoças italianas de biquíni. No meio da paquera, a mulher do personagem de Jobim chega, atrapalhando tudo. Mais tarde, assistimos aos personagens de João Gilberto e Luiz Bonfá (ambos de calça comprida e camisa na praia) jogando vôlei com duas italianas – também casados na ficção, eles são interrompidos pela chegada dos respectivos filhos.

AUSENTE Além dos quatro filmes que têm João Gilberto em cena, a jornalista aponta três documentários em que ele “é um ausente onipresente”: Onde está você, João Gilberto? (2018), de Georges Gachot, que recupera o percurso feito no Brasil pelo jornalista alemão Marc Fisher para escrever o livro Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto (2011); A música segundo Tom Jobim (2012), de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim; e Os filhos de João – O admirável mundo novo baiano (2009), de Henrique Dantas.

“No filme de Nelson Pereira dos Santos, João Gilberto aparece de relance, num átimo, que a gente perde,  se não prestar atenção. João está acompanhando Elizeth Cardoso na gravação do álbum Canção do amor demais (1958, marco inicial do que viria a ser a bossa nova)”, diz Maria do Rosário Caetano. Os filhos de João recupera a trajetória dos Novos Baianos. A célebre visita de João Gilberto, durante uma madrugada, ao apartamento em Botafogo onde o grupo vivia, influenciou definitivamente sua música, gerando o antológico álbum Acabou chorare (1972). “Henrique Dantas foi uma das vítimas do próprio João Gilberto em impedir o uso da imagem. Este encontro é parte substantiva da história dos Novos Baianos, e o diretor teve que usar uma imagem do João, uma foto em preto e branco, dividida em três partes, porque não conseguiu autorização dele para usá-la.”


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Na literatura, João Gilberto é tratado sob o prisma da biografia, da ficção e da fantasia. Músico foi à Justiça para tentar proibir circulação de livro que reproduzia "entrevistas desnecessárias" 

 

 João Gilberto, Gal Costa e Caetano Veloso, em registro de 1972. Seu encontro com outros músicos, dos Novos Baianos, virou tema de conto
João Gilberto, Gal Costa e Caetano Veloso, em registro de 1972. Seu encontro com outros músicos, dos Novos Baianos, virou tema de conto (foto: O CRUZEIRO/ARQUIVO EM)


Todo grande artista tem uma, quando não mais, biografia de fôlego. Mas não João Gilberto (1931-2019). Em 2012, pela Cosac Naify, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Walter Garcia (que havia publicado em 1999 a análise Bim bom – A contradição sem conflitos de João Gilberto, com prefácio de Caetano Veloso), organizou o volume João Gilberto. A antologia de 500 páginas reúne ensaios sobre a obra do músico baiano, fotografias, depoimentos e entrevistas suas publicadas na imprensa.

Mesmo que o livro não fizesse referências à vida pessoal do cantor, compositor e violonista, João Gilberto entrou em uma disputa judicial com a Cosac Naify, pedindo o recolhimento da obra. À época do lançamento, ele havia dito, por meio de seu advogado, que o livro foi publicado sem autorização e “com algumas reportagens desnecessárias” sobre ele. Perdeu a disputa. O livro não foi recolhido e teve todos os exemplares vendidos. Como não houve nenhuma reedição e a editora encerrou suas operações em 2017, o livro só pode ser encontrado hoje em edições usadas.

Chega de saudade (1990), de Ruy Castro, uma espécie de biografia da bossa nova, dá o devido destaque a JG. Outro relato biográfico é o perfil João Gilberto (2001), de Zuza Homem de Mello, escrito para a coleção Folha Explica. Publicado pela editora 34, Anos 70 Novos e Baianos (1997), de Luiz Galvão, aborda o célebre encontro de João Gilberto com a turma de Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Moraes Moreira.

Na ficção, João Gilberto gerou o romance Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto (2011), do jornalista alemão Marc Fischer. Um apaixonado pela bossa nova, ele chega ao Rio tentando, de forma obsessiva, se encontrar com o ídolo. Fischer, que se matou às vésperas do lançamento do livro, faz do romance um divertido thriller – ele se autointitula Sherlock, e dá o nome de Watson à tradutora carioca que o ajudou na procura pelo cantor em diversos pontos do Rio de Janeiro.

João Gilberto dá título a dois livros de contos. Foi em 1982 que Sérgio Sant'Anna publicou a antologia O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. “Fico satisfeito de ele ter sido publicado muito antes da morte dele, pois aquele concerto que ele não deu no Rio foi muito polemizado”, comenta hoje Sant'Anna, que, com a morte do cantor, preferiu se manter à distância. “Esgotei o assunto na época e a última homenagem que fiz a ele foi o silêncio”, comenta.

CANECÃO O concerto a que Sant'Anna se refere foi um show no Canecão que João Gilberto se recusou a fazer – depois de um diálogo improdutivo com os técnicos de som, ele desistiu da apresentação na então famosíssima casa de shows carioca. “Muita gente reclamou na época, mas, na minha opinião, ele estava certo, pois sempre foi um perfeccionista.” No conto, bastante fragmentado, Sant'Anna mistura a si mesmo, amigos e artistas (um dos destaques é o diretor Antunes Filho) com João Gilberto. Quase 40 anos atrás, o autor fez autoficção, muito antes de o termo entrar na moda. “O não concerto de João Gilberto é a coisa mais real do conto”, diz o escritor.

A frase inicial do conto de Sant'Anna – “John Cage ofereceu a gaiola vazia a João Gilberto e disse que era um presente de despedida” – foi reproduzida pelo escritor Sérgio Rodrigues na abertura de A visita de João Gilberto aos Novos Baianos (Cia. das Letras). Lançado em junho passado, poucas semanas antes da morte de João Gilberto, a antologia de contos é aberta por uma bem-humorada história que mistura mexerica, disco voador e maconha.

“Na verdade, a história surgiu a partir de um encontro casual em um restaurante com o Dadi (baixista que integrou os Novos Baianos), que, até então, eu não conhecia. Saí do almoço com o título A visita de João Gilberto aos Novos Baianos na cabeça. Ou seja, ele surgiu antes da história”, conta Rodrigues, que virá a Belo Horizonte para autografar seu livro no próximo dia 13. Embora seja o conto de abertura do volume, foi o último a entrar. “E, de alguma forma, ele organizou o livro, deu um certo espírito a ele, pois um livro de contos não é só juntar histórias aleatórias”, afirma Rodrigues.

NA ESTANTE

A visita de João Gilberto aos Novos Baianos 
Sérgio Rodrigues
Companhia das Letras (152 págs.)
Preço sugerido: R$ 44,90

Bim bom – A contradição sem conflitos de João Gilberto
Walter Garcia
Paz e Terra (224 págs.)
Esgotado (disponível apenas em sebos, a partir de R$ 350)

Chega de saudade 
Ruy Castro
Companhia das Letras (536 págs.)
Preço sugerido: R$ 82,90

Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto
Marc Fischer
Companhia das Letras (184págs.)
Esgotado

João Gilberto
Walter Garcia
Cosac Naify
Esgotado

João Gilberto
Zuza Homem de Mello
Publifolha (128 págs.)
Esgotado

O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro
Sérgio Sant'Anna
Companhia das Letras (224 págs.)
Preço sugerido: R$ 52,90
 




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