Jornal Estado de Minas

Filme 'No coração do mundo' mostra a vida que pulsa em Contagem


“O coração do mundo é o próximo lugar. É para onde a gente quer ir. Melhor, muito melhor. É onde a gente quer pisar. É para onde vai o desejo da gente.” É com as palavras da personagem Selma (Grace Passô) que vem a definição do novo longa da produtora Filmes de Plástico, roteirizado e dirigido por Maurílio e Gabriel Martins. Para os dois, esse já foi os bairros Laguna e Milanez, em Contagem, onde cresceram, e também Roterdã, na Holanda, onde estrearam em janeiro passado o título que marca os 10 anos da produtora que mantêm com André Novais Oliveira, diretor de Temporada. Depois de uma trajetória premiada no Brasil e no exterior, No coração do mundo chega nesta quinta-feira (1º) aos cinemas brasileiros.

A explicação de Selma vem enquanto ela tenta adequar um plano, num “bico” como fotógrafa que fazia na Escola Estadual Carlos Reichenbach. Única localidade fictícia da trama (ao menos na nomenclatura), a escola faz a devolução da homenagem que o cineasta gaúcho, falecido em 2012, prestou publicamente ao curta Contagem (2010), produzido como trabalho de conclusão de curso dos irmãos Martins e exibido no Festival de Brasília daquele ano.
No título que abriu caminho para a dupla mineira no cinema a expressão “no coração do mundo” surge em uma das falas de Marcos (Leo Pyrata), que reaparece no longa. Marcos é o interlocutor de Selma no diálogo em que ela descreve o título. O longa também incorpora a trama do curta Dona Sônia pediu uma arma a seu vizinho Alcides (2011), de Gabriel Martins.

“A origem da ideia diz muito sobre como funcionam nossos processos. É sabido por quem nos acompanha que eu e Gabito (Gabriel Martins) somos oriundos dessa periferia, então falamos com muita propriedade desse espaço. Quando veio a ideia de fazer o Contagem, lá em 2010, chamamos o Pyrata para ser o Marcos. Ele é um cara muito inteligente e sensível e, numa cena com a Kelly Crifer, introduziu essa frase: 'Vou te levar para o coração do mundo', inspirado num funk proibidão, que falava isso. Reverberou na gente, pela poética e o nome veio colado à ideia', afirma Maurílio Martins.
“Para nós, esse coração do mundo está lá, no Laguna e no Milanez. Mas, no filme, para alguns está, para outros, não, porque é um filme sobre isso, sobre ilusão, desilusão, querer e sonho”, diz ele.



ÔNIBUS 

Assim como em Contagem, Marcos namora Ana (Kelly Crifer). Ele é um jovem na casa dos 30, não trabalha, mora com a mãe e a irmã, não tem muitas perspectivas e, vez ou outra, se envolve em pequenos delitos. Ela é trocadora de ônibus, trabalhando na linha que vai do Laguna para BH, e passa os dias pensando em como gostaria de ir embora dali, onde se divide entre o emprego e a tarefa de cuidar do pai (Eid Ribeiro), que sofre de demência. Ana é amiga de Rose (Bárbara Colen), que tem um caso com Miro (Robert Frank), irmão de Beto (Renato Novaes), que mata o filho de dona Sônia (Rute Jeremias) com a arma de Marcos.

A teia social se estabelece enquanto cada um cuida do comum da vida. São pessoas que trabalham em empregos regulares na região, têm objetivos modestos e problemas corriqueiros, com exceção do homicídio que empurra Beto para longe dali. Dificilmente enquadrável em um gênero específico na maior parte do tempo, o filme ganha um ritmo mais acelerado quando Selma identifica uma oportunidade ousada que poderia mudar sua vida; afinal, para ela “ali não é mais o coração do mundo, não”.

A execução do plano requer o envolvimento de Marcos e Ana, que também poderiam aproveitar essa chance para melhorar sua realidade, caso se dispusessem ao risco. Daí pra frente, tudo ocorre no melhor estilo “Nova Hollywood”, como definem os dois realizadores.
“Nós temos um apreço muito grande por uma série de gêneros. É latente na nossa cinefilia, conversamos sobre filmes de modo geral, de Sessão da tarde até Matador de ovelhas (Charles Burnett, 2007), e muito sobre os filmes da Nova Hollywood, de ação, como Viver e morrer em Los Angeles (William Friedkin, 1985). Tentamos evocar um cinema dos anos 1970, como referência de tensão, e misturar com histórias que conhecíamos, adaptadas para personagens desse contexto nosso”, afirma Maurílio.



AMBIÇÃO

O cineasta destaca ainda a ambição do projeto. “O filme foi feito com uma verba bem menor do que é considerado baixo orçamento – menos de R$ 1 milhão. Mas ele já nasce ambicioso na proposição de ser um filme de histórias que se entrelaçam. Sempre falávamos em fazer esse tipo de filme. Na escrita do roteiro, isso veio de forma natural. Ele vai do drama ao melodrama e vira um filme de assalto, com ação, e uma forte ligação com a comédia”, aponta Maurílio Martins, observando que, embora essas características já estejam presentes em seus  curtas anteriores, elas surgem no longa com planos e sequências mais complexos e recursos técnicos mais apurados. Fizemos uma cena que não deve nada a Hollywood, falo isso sem falsa modéstia, porque temos muito orgulho de rever”, afirma.

Rodado entre 2016 e 2017, o longa reuniu no set profissionais que já se conheciam de outros trabalhos, caso dos protagonistas Leo Pyrata e Kelly Crifer. Grace Passô e Russo APR voltariam ao set como personagens principais de Temporada, também da Filmes de Plástico, que acabou sendo lançado antes, em 2018.
O elenco traz também figuras da música que os diretores admiram, como MC Carol, que interpreta uma amiga de Marcos, e MC Papo. Ele faz uma ponta como porteiro de um condomínio, na qual se vale de sua origem belga, e contribui com a trilha sonora na sequência de abertura, que se dá ao som de BH é Texas. 

“A personagem da MC Carol era um homem. Seria feita por um amigo nosso, que, no final, não pôde participar. Então resolvemos trocar o gênero. Ele (Maurílio) e eu temos certa obsessão com a MC Carol. Acho que ela é muito divertida. Queria trabalhar com ela há algum tempo, e era um sonho antigo dela ser atriz. Deu muito certo. Já o Papo tinha música muito marcante e queríamos muito conhecê-lo. E também havia a vontade dele de atuar”, comenta Gabriel Martins.

Kelly Crifer, que é atriz de teatro e professora do Galpão há oito anos, conheceu os dois realizadores quando eles foram a uma de suas peças, ainda como estudantes de cinema.
Dali veio o convite para a atuação em Contagem, que foi seu primeiro trabalho cinematográfico. A atriz avaliou a experiência como positiva e, assim como os diretores, teve vontade de expandir a história de Ana contada no curta. “Eu já tinha uma memória corporal, mas,  para interpretar uma trocadora, fiz muitas idas e voltas nesse ônibus, percebendo essas pessoas que vinham e voltavam, como era, a violência que surgia entre os passageiros, o motorista e a trocadora, um processo intenso”, diz a atriz, que ficou 40 dias hospedada na região. Kelly descreve com admiração o trabalho dos irmãos Martins: “Eles não estão fazendo teatro de favela. Estão universalizando a periferia. Em Roterdã, as pessoas se identificavam com as personagens, porque percebiam a força da humanidade e da poética da história”.


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