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Estado de Minas

Viúva de Saramago diz que 'não podemos chegar mais baixo em dignidade'

Pilar del Río preside a fundação que leva o nome do Nobel português. Em entrevista, ela fala sobre o pensamento do escritor e a conjuntura do 'poder pluricontinental'


postado em 02/08/2019 04:08

A jornalista Pilar del Río, que foi casada com José Saramago por 22 anos, participou da edição da Flip deste ano(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press )
A jornalista Pilar del Río, que foi casada com José Saramago por 22 anos, participou da edição da Flip deste ano (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press )


Foi totalmente por acaso que a jornalista Pilar del Río encontrou o Caderno VI do diário de José Saramago. A série Caderno de Lanzarote era praticamente uma tradição. Saramago os publicava todo ano e, em 2001, em um epílogo para uma edição espanhola do caderno de 1997, ele prometeu o sexto volume, aquele no qual estaria o dia em que ganhou o Nobel, 8 de outubro de 1998. Mas ficou por isso mesmo. Depois desse anúncio discreto, o escritor ainda publicaria livros como Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte. E nunca mais falou no Caderno VI. Saramago morreu em 2010 e, desde então, Pilar, com quem foi casado por 22 anos, passou a dirigir a fundação que leva o nome do autor e a organizar sua obra.

Em fevereiro do ano passado, quando ajudava o poeta Fernando Gómez Aguilera a organizar um livro com conferências e discursos proferidos pelo Nobel, ela foi ao computador antigo para checar uma série de datas e informações. Pilar se deparou, então, com o Caderno VI. “Encontrei-o por acaso. Era um livro que estava pronto há quase 20 anos e a casualidade me fez esquecê-lo”, conta a jornalista. “Parece mentira, porque não se pode esquecer um livro, mas foi o que aconteceu, eu esqueci. Foi uma surpresa que me fez atravessar uma madrugada. Emocionada, claro, imagina, de repente, eu estava lendo coisas que foram escritas há 20 anos e que se referiam ao dia a dia. E ninguém havia lido isso nos últimos 20 anos”, afirma.

Publicado no Brasil este ano pela Companhia das Letras, O último caderno de Lanzarote vem em uma caixa, acompanhado do relato Um país levantado em alegria, no qual o jornalista Ricardo Viel recorda os dias e fatos que se sucederam ao anúncio do primeiro Nobel concedido a um escritor de língua portuguesa. Revisitar o último diário do companheiro trouxe a Pilar um amontoado de lembranças, não apenas dos dias marcados nos textos, mas da própria maneira de pensar de Saramago. Em uma das entradas, datada de 10 de dezembro de 1998, ele reflete sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e seu contínuo descumprimento. “Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante”, escreve Saramago.

À frente da Fundação José Saramago, que se mantém com os direitos de autor do escritor, ela tem a declaração como norte. “Temos como objetivo intervir em todos os foros do mundo possíveis e por todos os meios – congresso, livros e reuniões – para o empoderamento dos seres humanos. Como? Através do desenvolvimento e cumprimento dos direitos humanos”, diz. Para Pilar, o mundo chegou ao fundo do poço, e os 30 artigos da Declaração de 1948 são uma lembrança de que é preciso reagir. A fundação, ela explica, não cuida da obra de Saramago. O espólio do autor foi doado à Biblioteca Nacional de Portugal, e quem cuida da obra hoje são as editoras e os leitores.

Na visita que fez ao Brasil, Pilar participou em Brasília do encerramento do congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, foi à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), ao lado do escritor José Luis Peixoto, que escreveu sobre Saramago, e visitou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão, em Curitiba, acompanhada da ex-presidente Dilma Rousseff. “Vi Lula como o havia visto em outras ocasiões na Europa, como um homem de Estado, um homem forte e firme, que a adversidade não derrotou”, afirma. Na entrevista a seguir, ela fala sobre o papel da literatura em tempos de conservadorismo e do legado de Saramago.


Para que serve a literatura hoje, quando crenças como a de que a Terra é plana, de que a democracia é descartável e de que os direitos humanos são uma invenção marxista malévola tomam corpo?

As pessoas que dizem que a Terra é plana estão lendo literatura que não é boa. A vida é completa e múltipla e claro que se pode viver sem literatura, mas, se vivemos com a literatura, seremos mais completos, com mais capacidade para discernir. De alguma maneira, um ser humano que tenha lido Tolstói, Kafka, Machado de Assis e Saramago é um ser humano mais empoderado.

Em Último caderno de Lanzarote, Saramago fala da importância da metáfora. Que metáfora hoje é importante para encarar esses primeiros 20 anos do século 21?

Tem uma frase de Saramago recordando os resistentes que morreram na Guerra Civil da Espanha e que foi o primeiro ensaio de fascismo na Europa. Depois da Guerra Civil da Espanha, veio a Segunda Guerra Mundial. E o que ele diz é que, sem memória, se não temos memória de quem somos e do que fazemos, não merecemos a vida.

Essas memórias estão sendo reescritas com o revisionismo?

O revisionismo é somente algo que vai para militantes muito concretos de determinadas religiões, não tem a menor importância. Acho que há algumas pessoas que necessitam do dogma para viver. Mas onde encontro problema mesmo é na falta de educação, em que as humanidades tenham desaparecido do ensino básico e médio, que as universidades tenham se convertido, em muitos casos, em oficinas tecnológicas. A educação é fundamental, a educação obrigatória e a educação em humanidades. Você será um oftalmologista melhor, um cientista melhor sabendo quem é o ser humano e de onde viemos.

Por que existe essa cruzada contemporânea contra as humanidades?

Porque somos extraordinariamente mais manipuláveis se não pensamos, nos deixamos levar por determinados slogans, se formos seres que apenas comem, ou que mal comem. Seremos seres governáveis assim. O poder, e não falo do poder político, mas multinacional, pluricontinental, não quer seres pensantes empoderados, quer seres submissos. Como dizia José Saramago, os três vetores que definem nosso tempo são: a resignação, o medo e a indiferença. Com a indiferença, não importa o que aconteça ao outro, se minha família está bem. A resignação é o sentimento de que não podemos fazer nada, e temos o medo de perder o pouco que temos.

Acredita que seja um ciclo?

Creio que, neste momento em que estamos, com a revolução tecnológica que não sabemos para onde nos leva e as coisas que se sucedem em uma velocidade vertiginosa, não sabemos bem como vamos acabar. Se isso é um ciclo ou não, creio que vai depender da vontade dos cidadãos. Ou nos damos conta de que não podemos chegar mais baixo em dignidade, que alcançamos as cotas possíveis de indignidade, e começamos a subir, ou não sei… Porque mais disformes do que estamos, já não se pode ser.

Saramago falava muito de neoliberalismo, da globalização e, no diário, ele volta a esses temas. O ressentimento popular em relação à globalização gerou movimentos como o Brexit e a eleição de governos conservadores. As gerações mais novas estão perdendo perspectivas, já não são capazes de alcançar o bem-estar social que seus pais conseguiram. Como chegamos aqui?

Acho que minha geração parece que alcançou o máximo, mas fez algo muito ruim, que foi não se aprofundar na educação. Segundo um estudo da Unesco, no ano 2030, mais de 50% das profissões que serão exercidas não estão inventadas. Vão inventar novos trabalhos, e as pessoas estão se preparando para outros trabalhos que não vão existir, porque serão feitos pelas máquinas. Estamos preparando seres humanos para enfrentar a dificuldade ou os estamos empurrando para a delinquência? Não sei. A verdade é que são tempos muito difíceis. Por isso, insisto: precisamos de educação e humanidade, de saber quem nós somos, que memória temos, como nos construímos, onde podemos começar. Não é matar o outro; é construir com o outro. Somos seres em construção.

No diário, o repórter pergunta a Saramago o que é que ainda existe da esquerda e ele responde que a pergunta deveria ser “o que foi que abandonamos da esquerda?”. O que você acha que foi? 

Acreditamos que tínhamos conquistado tudo e não tínhamos conquistado tudo. Sigo insistindo em que a Declaração dos Direitos Humanos é de cumprimento obrigatório e estaríamos de outra maneira se pensássemos que todo mundo tem que ter casa e trabalho. E não se trata de um consumismo desenfreado e, sim, de estabilidade, de harmonia, de felicidade. Como conseguir a felicidade e a harmonia? Teríamos que estar trabalhando na sociedade e não estamos conseguindo, nós a abandonamos. E um problema ao qual sempre voltamos é a instrução, a educação. Se trabalharmos nisso, em como harmonizar a sociedade, tenho certeza de que teremos menos violência, menos depressão, menos tristeza. Seria idílico. E nada é idílico. Mas o que está claro é que sentimos o outro como uma ameaça, mas se estivéssemos trabalhando com o outro para construir uma sociedade melhor, não o sentiríamos como uma ameaça, mas como um complemento.

A obra do Saramago está bem cuidada pelos leitores e editoras?

Acho que sim. Ele é publicado continuamente e reeditado. É um autor universal e, para os leitores, é algo próprio. Tão português e, por ser tão português, é universal.

Estamos indo da lucidez à cegueira?

Humm…. Quero pensar que chegamos no fundo do poço e que é cíclico. E que as situações tão duras que vemos, diante de determinadas realidades tão sinistras, tão canalhas, espero que muitos seres humanos reajam e digam não, por esse caminho não podemos ir. Porque senão não seremos nem mais humanos e vamos todos ser vítimas. Estamos no fundo do poço. Temos que parar e refletir. Queremos a violência ou avançar no processo de humanização de seres dialogantes?



Último caderno de Lanzarote
. De José Saramago

Um país levantado em alegria
. De Ricardo Viel

. Companhia das Letras (496 págs.)
. R$ 99,90


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