O espaço existe e está devidamente estruturado e equipado. Agora, resta ao público também fazer a sua parte. Reaberto na última semana após um fechamento que durou um ano e meio, o Cine104, na Praça Rui Barbosa (Praça da Estação), busca, mais uma vez, se manter na ativa – é a única sala de cinema do Baixo Centro e um dos últimos espaços de rua de Belo Horizonte.
“Só faz sentido manter um cinema aberto se o público vier. Tenho muita experiência de cinema e a minha busca sempre foi por uma relação mais profunda, legítima. Vamos evitar ser só uma vitrine de filmes, queremos conquistar não só pelos filmes, mas pelo diálogo e interação”, afirma Mônica Cerqueira, de 61 anos, a nova curadora da sala.
Neste momento o cinema está funcionando com apenas duas sessões semanais – quartas e quintas-feiras, às 19h30. A partir do mês que vem, a sala abrirá também às segundas, com uma programação voltada para documentários de grupos e coletivos da cidade. Pelo menos uma vez por mês haverá um debate com um realizador ou pesquisador de cinema.
O 104, sala de 90 lugares inaugurada em 2012, integra o CentoeQuatro, espaço multiuso que funciona há 10 anos na antiga fábrica de tecidos homônima, na Praça Rui Barbosa. Para além da sala de exibição, funcionam no galpão nos dias de hoje o Guima Café, o restaurante A Central e o CIV Coworking.
Desde o final de 2016, a sala de exibição funciona de forma intermitente. Mantida por meio de recursos incentivados, já que a bilheteria não garante a operação do cinema, a falta de patrocínio fez com que ela ficasse, entre 2017 e 2018, aberta por apenas alguns meses. Nesse período, o espaço cultural passou por diferentes gestores.
A reabertura do cinema não é definitiva. Por ora, estão garantidos os recursos para o funcionamento da sala até dezembro – o patrocínio é do Banco BMG, via Lei Federal de Incentivo à Cultura. “O aporte que conseguimos corresponde a 20% do valor total do projeto. Então tivemos que readequar o projeto, diminuir os dias de funcionamento do cinema”, afirma Gabriela Silva, que atualmente responde pela gerência do espaço cultural.
“O CentoeQuatro estava sem direcionamento. Agora está passando por um processo de reestruturação para que volte a ser uma referência na área cultural”, diz Gabriela. Para que ele saia do vermelho, além de programação cultural, o galpão – cuja área multiuso já sediou festas, shows e festivais – está se abrindo também para ser alugado para eventos corporativos. “Aqui é um espaço particular e trabalhar só com cultura às vezes é inviável”, afirma a gerente. Para outubro, ela afirma que já há três eventos marcados.
DESAFIO Mônica Cerqueira sabe que está longe do ideal abrir uma sala de cinema apenas alguns dias de semana. “O começo está sendo meio devagar, porque tivemos que redimensionar o projeto. Mas não adianta ter um projeto ideal. Você tem que adequá-lo para o que conseguiu captar.” E o desafio nos dias de hoje para fazer uma pessoa sair de casa para ir ao cinema é muito maior. “Antes, cinema era quase uma igreja. Se você não fosse, não via os filmes. Hoje, além dos blockbusters, dos 'reis Leão' urrando em tudo o que é sala, há os outros acessos – Netflix etc. Então sempre penso no trabalho de escutar o público, fazer com que as pessoas tenham uma relação quase afetiva com o espaço.”
É uma relação de mão dupla. O 104 pretende apresentar uma programação acessível (os ingressos custam R$ 10 a inteira) e de qualidade. Os filmes serão exibidos por duas semanas. O programa duplo da reinauguração: o documentário My name is now – Elza Soares, de Elizabete Martins Campos, e Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, se repete nesta semana.
Os dois longas, exibidos no circuito comercial em 2018, foram escolhidos porque concorrem ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – a premiação será nesta quarta (14), no Theatro Municipal de São Paulo, e os concorrentes estão sendo exibidos também no Cine Humberto Mauro. My name is now é a única produção mineira na corrida. Um ingresso dá direito aos dois filmes. De acordo com Mônica, como são produções relativamente curtas, com pouco mais de uma hora de duração, foi possível programar uma sessão dupla.
Já a partir do próximo dia 21, o destaque será a produção franco-chinesa Longa jornada noite adentro, de Bi Gan, que participou da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes do ano passado. Lançado em março em BH no Indie Festival, o longa, que acompanha com alguma dose de surrealismo a jornada de um homem à sua cidade natal em busca da mulher amada, foi pouco visto na cidade – esteve em cartaz com apenas uma sessão diária, durante uma semana de maio, no Cine Belas Artes.
“Será uma programação incomum”, afirma Mônica. Pois não há como concorrer com o comum nas salas de shopping. E isso ela sabe como ninguém. A partir da década de 1980, ela esteve envolvida em alguns dos cinemas mais importantes de BH – salas que formaram mais de uma geração de cinéfilos. Em 1979, Mônica era estudante de comunicação na PUC quando foi contratada como datilógrafa no Palácio das Artes.
Apaixonada por cinema, um ano depois entrou para o Cine Humberto Mauro, onde logo assumiu a frente. “Foi uma escola muito maior do que qualquer outra”, relembra. Ficou bons anos naquela sala, até que, em 1988, com outros três sócios, um deles seu irmão, Eduardo Cerqueira, hoje na distribuidora Zeta Filmes, resolveu abrir seu próprio cinema.
SAVASSI CINECLUBE O espaço onde funcionava uma oficina de conserto de eletrodomésticos na Rua Levindo Lopes não era o ideal. Mas tinha um pé-direito alto e um bom projeto arquitetônico viabilizou o Savassi Cineclube. Não demorou para que a pequena sala virasse a referência dos cinéfilos da capital mineira. Era tudo muito próximo. Um caderninho, Mônica se lembra, era aberto para que o público apontasse suas preferências. A produção francesa Betty Blue (1986), de Jean-Jacques Beineix, por exemplo, saía e voltava ao cartaz segundo pedidos da plateia.
A partir dessa experiência bem-sucedida, o grupo de sócios inaugurou, em 1991, a Usina Unibanco de Cinema. No Bairro Santo Agostinho, o projeto era mais ousado, com mais de uma sala (inicialmente, duas, que chegaram a quatro) incluindo um bar-café, sonho antigo dos proprietários. Os sócios foram mudando, e Mônica também.
Ela teve ainda, por um ano, em meados dos anos 1990, o Cine Imaginário, em Santa Efigênia. Projeto ainda mais ambicioso – e que nunca se repetiu na cidade, vale dizer – ocupava um grande galpão. Durante o dia, sessões de cinema em poltronas móveis. À noite, lugar de shows – Arnaldo Antunes e Tom Zé passaram por lá.
Depois desses três espaços, Mônica não teve mais sua própria sala. Ainda programou, durante sete anos, outra sala alternativa de BH – o La Boca, que funcionava num bar e sinuca no Barro Preto. “E ele fechou por causa do bar, não pelo cinema. As duas salinhas sempre se sustentaram”, diz ela. Mais tarde, Mônica deu consultoria e ainda programou um projeto de exibição semanal no Museu das Minas e do Metal.
Fora da programação das salas, voltou-se para o roteiro – escreveu os longas Deserto azul (2013) e A casa do girassol vermelho, ambos projetos dirigidos por Éder Santos, o último atualmente em fase de finalização. “Ou seja, nunca saí do cinema, então não sinto como se estivesse voltando”, comenta. Mas não há como negar que a chegada ao 104 marca um retorno dela ao cinema de rua. “E ele hoje é o anticinema de shopping. Não só por uma diferença física, de estar na rua. É uma diferença na alma”, conclui.
CINE104
Praça Rui Barbosa, 104, Centro, (31) 3222-6457. Na quarta (14) e quinta (15), às 19h30, serão exibidos, em programa duplo, os filmes My name is now – Elza Soares, de Elizabete Martins Campos, e Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi. Nos dias 21, 22, 28 e 29 de agosto, no mesmo horário, será apresentado Longa jornada noite adentro, de Bi Gan. Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (meia).
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