“Ele conserta a mente das pessoas – por dentro.” Assim o veterano de guerra transformado em dono de uma loja de cigarros Otto Trsnjek (Johannes Krisch) explica ao jovem Franz (Simon Morzé), seu aprendiz, a profissão de Sigmund Freud (Bruno Ganz), um consumidor frequente dos charutos e jornais vendidos no estabelecimento.
É em torno desse trio de protagonistas e da esquiva Anezka (Emma Drogunova) que se desenrola a trama do longa A tabacaria, de Nikolaus Leytner, em cartaz em Belo Horizonte (Cine Ponteio – 16h50, 19h10 e 21h20).
Interiorano recém-chegado a Viena, onde se sente atordoado pelo “barulho, o cheiro do canal” e por um fulminante amor à primeira vista por Anezka, enquanto assiste à progressiva e veloz rendição da Áustria ao nazismo, Franz literalmente corre atrás de Freud, interessado em saber como ele consegue colocar em ordem ideias e sentimentos alheios. “As pessoas deitam no meu sofá e começam a falar. Se tivermos sorte, eu e o paciente sairemos curados”, responde o pai da psicanálise.
Na relação que desenvolvem, Franz e Freud têm diversos diálogos em espaços públicos – a tabacaria, a rua, um banco de praça, uma cafeteria. Esse é outro aspecto que Ana Cecília aprecia no filme, por mostrar que “o ouvido psicanalítico não depende da formalidade de um divã. Você pode ouvir psicanaliticamente em qualquer lugar, porque desenvolve esse tipo de escuta que, de certa maneira, torna audível o que as pessoas não se dão conta de que estão pensando. Você não julga, não faz nenhum tipo de reprimenda. Deixa a verdade do outro aparecer nos termos dele”.
No filme, baseado em livro do austríaco Robert Seethaler, Franz não é um cliente de Freud, bem ao contrário, mas o jovem “não passa ileso de um encontro com o psicanalista”, como observa Sheherazade Paes de Abreu, psicanalista e membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. “Fica a pergunta: o que desse encontro resta?”, diz a psicanalista.
Quando explica a Franz o porquê do divã em seu consultório, Freud diz que desse modo a sessão é mais confortável para o paciente e acrescenta que “a verdade é quase sempre confortável”. “Acho difícil concordar com essa assertiva. Na minha clínica, ocorre justamente o contrário. A verdade a que o paciente chega geralmente é desconfortável para ele. Às vezes, muito desconfortável. Não é à toa que ele a manteve inconsciente”, afirma o professor de psicanálise da PUC-Minas Luis Flavio S. Couto.
Uma afirmação como essa na boca de Freud também soa como um escorregão do roteiro para Gilson Iannini, professor de psicanálise da UFMG e editor da coleção Obras incompletas de Freud (Autêntica). “Esse ponto não bate bem com a teoria psicanalítica. Para a psicanálise, a verdade tem sempre algo perturbador, já que mexe com a imagem e as ilusões que temos de nós mesmos, com nosso narcisismo”, diz.
A psicanalista cita o diálogo entre Freud e Franz no qual o rapaz se diz inseguro sobre sua capacidade de amar, dada sua inexperiência no tema, ao que Freud responde: “Você não precisa estudar a água para dar um mergulho”. “Será que, nesse instante, pode-se ver a possibilidade de uma verdade plural e não-toda?”, indaga Sheherazade.
No momento em que percebe o abatimento de Franz com seu insucesso amoroso, Freud decide aconselhar o rapaz. “Vou te passar três medicamentos. O primeiro é para sua dor de cabeça: pare de pensar no amor. O segundo é para sua dor de estômago e sonhos perturbadores: deixe uma caneta e papel ao lado da cama e anote seus sonhos, assim que acordar. O terceiro medicamento é para a dor no coração: vá atrás da garota ou esqueça-a”.
Sigmund Freud (1856-1939) “jamais diria isso” no consultório, de acordo com o professor Luis Flavio. “Ele não dá sugestões diretas para o paciente: faça isso, faça aquilo. O máximo que ele poderia dar como sugestão direta é: 'Fale sobre isso'.” Quanto ao conteúdo dos conselhos, no entanto, o roteirista acerta, sobretudo no que diz respeito aos sonhos, na avaliação de Ana Cecília.
“Freud acreditava que os sonhos eram a via mais importante de acesso ao inconsciente. Assim como os lapsos e os esquecimentos, estão contando coisas que, em nós, estão agindo à nossa revelia. Os tormentos, o sofrimento físico, a angústia – existe um modo de descrever esses fenômenos e inseri-los numa cadeia de sentido. O sonho é um meio importante de ter acesso a esse sentido, e disso Freud não abria mão.”
Quanto ao terceiro conselho, Gilson Iannini acha “improvável que Freud dissesse isso numa conversa informal com um rapaz”, mas avalia que há na recomendação de ir atrás da garota ou esquecê-la “uma tarefa ética” condizente com a teoria psicanalítica.
“O que está em jogo é ir atrás do próprio desejo. Não adianta ficar ruminando ou preso na inibição, na ilusão”, aponta. Em todo o filme, contudo, a afirmação do psicanalista que o professor da UFMG considera de fato “muito freudiana” é a de que “o amor é sempre um grande erro”. “É um erro, mas um erro inevitável. Ou seja, não tem acerto, mas tenho que aprender a minha maneira de errar”, afirma Gilson.
Para Ana Cecília, “esses três conselhos são boas metáforas do que você faz no trabalho psicanalítico. Não adianta ficar pensando sem agir. Por outro lado, você só pode agir quando tiver uma noção um pouco maior daquilo que está te motivando. Não adianta ficar intelectualizando o sentimento. Mas é possível contar de um até 10 antes de agir”.
A psicanalista e escritora observa que, ao longo da trama, “o rapaz vai se fortalecendo, vai ficando coerente com ele mesmo, mas o filme mostra que há um preço a pagar para você se definir como sujeito”.
A história de A tabacaria se passa pouco antes de Freud e a família se exilarem em Londres, fugindo da perseguição nazista, o que ocorreu em março de 1938. Nesse contexto, os preços a pagar por todos os personagens são altos demais.
O retrato que o longa de Leytner desenha do ambiente da Áustria nazista ou de “um tempo de morte”, nas palavras de Sheherazade, pareceu acurado aos psicanalistas ouvidos pela reportagem. “E é bom que se diga que a psicanálise pode se vangloriar de ter sido rejeitada por todos os regimes totalitários. Nenhuma outra área tem esse mérito”, diz Gilson Iannini.
FREUD NA FICÇÃO
Confira frases que o pai da psicanálise diz em A tabacaria
“Ninguém sabe nada sobre o amor; muito menos eu”
“Você está sofrendo, mas te garanto: podemos tratar a dor”
“Você não precisa estudar a água para dar um mergulho”
“As pessoas deitam no meu sofá e começam a falar. Se tivermos sorte, eu e o paciente sairemos curados”
“Não estamos neste mundo para encontrar respostas, mas para fazer perguntas”
“Só com muita coragem ou persistência ou estupidez, de preferência as três coisas juntas, somente assim conseguiremos deixar uma marca no mundo”
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