Que governo novo é esse? E a democracia? Mas a censura não acabou?” O questionamento é de Hebe Camargo, numas das primeiras cenas de Hebe – A estrela do Brasil, filme que retrata um momento importante da trajetória da apresentadora e que estreia nesta quinta-feira (26) nos cinemas.
Qualquer semelhança com a realidade atual é mera coincidência, mas não deixa de surpreender o diretor do longa, Maurício Farias (O coronel e o lobisomem, A grande família).
“Quando li o roteiro, há uns dois anos, já percebi que havia algumas questões que eram muito atuais. E, agora, com o filme pronto, me impressionou mais ainda esse paralelo. Como o Brasil foi ficando mais conservador, polarizado. Hebe era uma mulher transparente, que defendia as minorias e enfrentava dificuldades com isso. Era uma mulher do diálogo, da liberdade de expressão, que falava, mas também sabia ouvir. Algo que está faltando muito nos dias de hoje”, afirma.
A roteirista Carolina Kotscho – que foi procurada pelo produtor Lucas Pacheco, amigo da família da homenageada para levar adiante o projeto – também comenta como foi curioso e, ao mesmo tempo, “perturbador” notar essas semelhanças com o Brasil de 2019.
"Quando comecei a escrever, a gente vivia um outro momento. Movimentos como o #MeToo (contra o assédio), reconhecimento do casamento gay. Em um ano e meio, o contexto mudou completamente. Quando assisti ao primeiro corte, fiquei até emocionada. Era como se não tivesse escrito aquilo. O filme ganhou outro sentido, outra dimensão”, diz.
O grande trunfo da produção é a escolha da protagonista, Andréa Beltrão. Como a crítica tem observado, apesar de não ser parecida fisicamente com Hebe Camargo, ela conseguiu captar o jeito e a energia da artista, que teria completado 90 anos em 8 de março passado. Carolina conta que, desde que assistiu ao documentário Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho, ficou impressionada com a performance de Andréa. “E com a Hebe ela conseguiu chegar num lugar do drama, com muita densidade. Ela enche a tela. Andréa se dedicou com afinco; fez muita pesquisa, estudou, e o resultado é esse trabalho lindo que está emocionando muita gente”, diz.
A roteirista não se esquece de quando as duas foram pela primeira vez até a casa da apresentadora, em São Paulo, para conhecer o acervo dela. A família disponibilizou boa parte do figurino e das joias de Hebe para serem usados no filme.
“O primeiro vestido que coloquei na Andréa coube perfeitamente. Os sapatos também entraram no pé dela como Cinderela. Foi até emocionante. Era como se 'alguém' estivesse nos autorizando”, recorda a roteirista.
Maurício Farias, casado com a atriz desde 1994, também é só elogios ao trabalho dela. Ele revela que tinha certo receio de fazer uma cinebiografia de alguém que está no imaginário de tanta gente há décadas. “Num primeiro momento, o espectador espera encontrar aquele ídolo, mas isso é uma coisa impossível. É um desafio corresponder à expectativa do público. A gente poderia ter uma atriz muito parecida e não ser nada bom. É preciso outra coisa – ter alma, verdade, acreditar que o biografado está ali de alguma maneira.”
O longa-metragem se passa no fim dos anos 1980. Nessa época, perto dos 60 anos, Hebe já acumulava quatro décadas de carreira e esbanjava fama, dinheiro e influência. Na transição democrática, o Brasil, por sua vez, ainda exibia traços ditatoriais, como a censura.
A loira aceita correr o risco de perder suas conquistas em troca do direito de ser ela mesma na frente das câmeras. No tudo ou nada, Hebe defende os homossexuais, os aposentados, as mulheres e ataca os políticos e suas regalias. Leva para o seu famoso sofá temas considerados tabus na época, como a Aids.
E enfrentou resistência por conta disso. Os dramas pessoais, como sua relação conflituosa com o segundo marido, Lélio Ravagnani, interpretado de forma brilhante por Marco Ricca, e com o filho único Marcelo (Caio Horowicz) estão presentes na trama.
Carolina Kotscho conta que sua principal base de pesquisa foi o acervo gigantesco de uma fã de Hebe Camargo que colecionou tudo o que podia ao longo dos 70 anos da carreira da apresentadora. “Ela guardou tudo. São mais de 30 álbuns com mais de 3 mil recortes. Um material riquíssimo. Era como se a Hebe estivesse falando comigo. Foi um mergulho profundo”, diz.
Hebe – A estrela do Brasil é a quarta cinebiografia da roteirista, que assinou também as histórias de Zezé di Camargo e Luciano (2 filhos de Francisco), Paulo Coelho (Não pare na pista) e de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares (Flores raras).
Para Carolina, o grande prazer que tem nesses projetos é entender a essência da personagem e fazer um bordado da dramaturgia. “As frases que estão ali são todas dela. Mas tem uma construção dramatúrgica. Um ou outro momento a gente desloca, dá um bordado. Mas não tem nada inventado”, afirma.
O filme ainda conta com Danton Mello (Cláudio Pessuti, sobrinho e empresário da apresentadora), Gabriel Braga Nunes (Décio Capuano, o primeiro marido), Danilo Grangheia (Walter Clark), Otávio Augusto (Chacrinha), Claudia Missura (Nair Bello), Karine Teles (Lolita Rodrigues) e Daniel Boaventura (Silvio Santos).
Projeto se desdobra em série e documentário
Além do filme, o projeto, feito em parceria com a Hebe Forever, plataforma que gerencia ações relativas à imagem, ao acervo e à carreira da apresentadora, administrada por Cláudio Pessutti, engloba uma minissérie, que estreia em janeiro de 2020 na Globo, e também um documentário, que deve ser concluído até o fim do ano.
Carolina Kotscho, responsável pelo roteiro dos três produtos, diz que é um privilégio poder contar essa história de maneiras diferentes. “O filme traz aquela explosão, um momento de ruptura na vida pessoal, profissional e também uma ruptura no próprio país. Já a série traz também essa Hebe dos anos 1980, mas é mais abrangente – vai da adolescência até o fim da vida. É um fluxo de consciência, da memória. A biografia de uma pessoa famosa não pode ser um power point. Tem uma outra construção, uma outra reflexão”, diz.
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