Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Aos 83, Silviano Santiago passa a memória a limpo em quatro livros

Italo Moriconi diz que ofereceu 'um aperitivo' da obra do mineiro - Foto: divulgação
Parte relevante dos ensaios do romancista, contista, cronista e professor Silviano Santiago, de 83 anos, está reunida em livro organizado pelo crítico Italo Moriconi, que traz textos escritos pelo intelectual mineiro ao longo de 60 anos. Vários deles foram publicados em revistas e jornais. Outros fizeram parte de livros esgotados. Há também ensaios recentes encomendados para revistas e catálogos.

Silviano Santiago diz que o projeto foi uma forma de passar a vida a limpo. “Dei carta branca para que o Italo escolhesse o que ele considera mais interessante ou atual. Ele foi meu aluno na PUC do Rio,  orientei sua tese de doutorado sobre a pós-modernidade. É um profissional que conhece o meu trabalho e tem experiência profunda em antologias”, ressalta.

35 ensaios de Silviano Santiago é dividido em quatro seções temáticas – “Geopolíticas da cultura”; “Literatura brasileira & outras: crítica e história”; “Crítica do presente”; e “O livro sobre modernismo” –, que evidenciam o perfil multifacetado do mineiro.

 

Na introdução do livro, Moriconi explica que a seleção se pautou pelo critério do que parecia mais significativo para uma antologia. “Não necessariamente 'o melhor', até porque tudo que Silviano escreveu sobre literatura brasileira é 'do melhor'.

Em tudo que Silviano escreve sobre literatura, há o grão da ideia original, a agudeza da provocação pertinente. Difícil fazer justiça ao Silviano crítico e estudioso especificamente de literatura brasileira numa antologia cuja meta é apresentar o perfil diversificado de toda uma trajetória de pensamento. O recorte terá que ser drástico, quase que um aperitivo, embora substancial como refeição completa”, afirma.


Silviano Santiago conta que, ao longo de sua diversificada trajetória, optou por uma linha mais segura, daí a dedicação a tantos ensaios. “Nunca escrevi uma tese sobre um grande autor, porque isso demanda 15, 20 anos. Optei pelo ensaísmo até porque também tenho uma vasta obra de ficção. Ao mesmo tempo em que os ensaios têm seu valor, também têm seus problemas.”
 

 
De acordo com ele, o ensaio lhe possibilita trabalhar mais as ideias do que obras. “Se você pegar o Machado de Assis, por exemplo, o mais importante, para mim, não é a visão global dele, mas o que acho de mais relevante na retórica da verossimilhança, que não tem nada a ver com a retórica da verdade.
Isso, aliás, está no texto Retórica da verossimilhança: Dom Casmurro”, comenta.

Ele cita também sua análise sobre Caetano Veloso. “Em vez das letras, preferi estudar a questão do corpo que ele traz para a música popular brasileira, que é diferente da do Chico Buarque, por exemplo. Me interessa a capacidade que o Caetano e o Ney (Matogrosso) têm de trabalhar os corpos segundo padrões de comportamento que escapam da tradição dos espetáculos”, comenta o autor dos livros Stella Manhattan, Uma literatura nos trópicos, Mil rosas roubadas e Heranças e Machado, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2017.

“A tese é objetiva, direta, enquanto o ensaio é opinativo. E serve pra isso. Você ensaia alguma coisa, uma ideia, a repercussão dela e até mesmo uma certa falência dessa ideia”, resume Silviano.

OITICICA

Publicado na edição do Estado de Minas de 23 de março de 1980, Fé no veneno, o ensaio Hélio Oiticica em Manhattan foi uma homenagem do autor ao amigo. “Esse texto saiu no jornal no dia seguinte à morte dele. Mostra a nossa convivência em Nova York, mas também meu interesse na figura de seu avô, José Oiticica, filólogo de renome mundial que conciliou a gramática com a anarquia”, explica.

Para Silviano, seu interesse na obra ensaística está no fato de ser possível enxergá-la melhor com o passar dos anos, além de constatar como determinada questão era tratada naquele contexto e como pode ser abordada atualmente.

“Alguns assuntos e temas ainda estão presentes. Você vê o próprio texto Repressão e censura no campo das artes na década de 70.
Claro que não é a mesma coisa, mas há alguma semelhança com o que estamos vivendo. O ensaio anda tão devagar quanto a própria história do Brasil”, acredita.

Silviano compara o ensaio crítico ao aço oxidável, sensível à ação corrosiva. “O ensaio é assim. Oxida com o tempo. Trabalha com certos elementos que podem ficar enferrujados, mas, ao mesmo tempo, essa ferrugem é importantíssima. Faz parte de sua essência.”

O livro 35 ensaios de Silviano Santiago será lançando na próxima quinta-feira (3/10), em São Paulo, e na Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro. De acordo com Italo Moriconi, “cada etapa na evolução do labor ensaístico de Silviano Santiago é um posicionar-se frente aos grandes debates e dilemas que marcaram as humanidades nas últimas décadas”.

O menino sem passado

- Foto:
Enquanto vê sua obra ensaística “passada a limpo”, Silviano Santiago se debruça sobre o próprio passado no projeto literário que desenvolve há dois anos, que terá quatro volumes. Cada um deles foi batizado com o nome de uma cidade onde ele viveu.

O primeiro é Formiga, sua terra natal, onde morou de 1938 a 1948. “A primeira versão está praticamente pronta e tem umas 300 páginas. Fui colocando tudo de que fui me lembrando.
Quando a gente coloca a nossa história no papel, descobre que a memória tem muito buraco, mas os buracos também são importantes”, diz.

O segundo volume se chamará Belo Horizonte; o terceiro, Rio de Janeiro; e o quarto, Paris. O título da empreitada foi “emprestado” de um poema de Murilo Mendes, O menino sem passado.

“Ainda não sei quando ele será lançado ou finalizado. Pode até que ser seja póstumo (risos). Só posso te assegurar: mesmo com 83 anos e com os buracos da memória, ela está muito boa, de maneira geral, e eu me lembro de muita coisa. Material para fazer esse trabalho eu tenho”, conclui.
 
 
35 ENSAIOS DE SILVIANO SANTIAGO
Seleção e introdução: Italo Moriconi
Companhia das Letras
640 páginas
R$ 94,90
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