Quando Heath Ledger venceu postumamente o Oscar de melhor ator coadjuvante, em 2009, um ano após sua chocante e precoce morte, explicada pelos laudos como uma overdose de remédios, era difícil imaginar que o Coringa aparecesse novamente no cinema com tamanha magnitude, sob a interpretação de outro ator.
Dez anos depois, Joaquin Phoenix se mostra capaz de provar o contrário, ao ser pelo menos igualmente marcante como protagonista do longa de Todd Phillips, que tem pré-estreia nesta quarta-feira (2) em Belo Horizonte e estreia amanhã em todo o mundo.
Dedicado a contar a gênese da cruel loucura do vilão mais popular da cultura pop, o filme chega ao circuito comercial sob a expectativa de mais prêmios (venceu o Festival de Veneza, no mês passado) e já envolto em muitas polêmicas, indissociáveis de uma figura tão violenta quanto carismática.
Em Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008), dirigido por Christopher Nolan, o personagem de Ledger deixava para trás qualquer traço cômico, visto em adaptações anteriores, para encarnar um psicopata excêntrico, mas inescrupuloso e capaz de conquistar o público pela autenticidade e persuasão.
A versão assumida por Phoenix não descarta essas características. Porém, apresenta uma trajetória humana ainda mais impactante, diretamente relacionada a várias misérias sociais contemporâneas. Coringa extrapola o universo dos quadrinhos, sendo um drama violento e inquietante sobre um homem derrotado pela sociedade e por si mesmo.
Na história coescrita por Scott Silver e Todd Phillips, mais conhecido até então por comédias exageradas e aclamadas como Se beber, não case, o palhaço não aparece explodindo hospitais, nem roubando bancos cercado de capangas fantasiados. Ele é apenas Arthur Fleck, um jovem pobre, que sonha em ser comediante, tem adoração pelo astro da TV Murray Franklin (Robert De Niro), mas ganha a vida fazendo pequenos números com nariz vermelho, peruca e maquiagem, quase sempre sem graça para quem está ao redor.
Sua vida melancólica ainda se divide entre os cuidados com a mãe enferma (Frances Conroy), com quem divide o apartamento, e sessões de terapia no serviço social, que o abastece também com medicamentos para seus múltiplos distúrbios psicológicos. Um deles o faz gargalhar em qualquer situação tensa que vivencie.
Nessa trama não existem heróis, tampouco qualquer luta do bem contra o mal. Bruce Waynne é apenas uma criança, que ainda não vivenciou o traumático assassinato dos pais, responsável por transformá-lo no Batman anos mais tarde. Contudo, os vilões são vários e Fleck, a princípio, uma vítima. Sempre tratado como um “esquisito”, segue uma rotina de humilhações, insultos, agressões e fracassos de toda sorte.
Ele acreditava ser alguém feliz, cujo destino era compartilhar alegria com os outros, mas essa compreensão vai ruindo no ritmo dos traumas que sofre. É aí que aspectos nada ficcionais da sociedade entram em seu caminho. Entre eles, o acesso fácil a uma arma de fogo e o descaso do poder público com a atenção à saúde mental da população, cortando gastos para o setor diante da crise financeira em Gothan City.
Embora a história se passe entre os anos 1970 e 1980, abordar esses temas sociais urgentes nos dias de hoje explica o sucesso arrebatador no Festival de Veneza. Presidente do júri, a cineasta argentina Lucrecia Martel (A menina santa, Zama) justificou a escolha de Coringa para o Leão de Ouro dizendo: “É incrível que uma indústria cujo principal foco é o negócio tenha corrido tamanho risco com Coringa. Fazer para esse público um filme que é uma reflexão sobre os anti-heróis, mostrando que talvez o inimigo não seja o homem, mas o sistema, me parece bom para os Estados Unidos e para o mundo todo”.
A esta altura, o diretor Todd Phillips preferiu não “definir o filme”. “A visão de Lucrecia Martel está correta e compartilho dela. Fico feliz que as pessoas tenham entendido o que estávamos tentando fazer. Mas não quero delimitar as interpretações”, disse ele.
De lá para cá, o filme começou a receber um bombardeio de críticas por supostamente incentivar e legitimar a violência. O Coringa de Phoenix foi visto por uma parcela da crítica como um retrato da comunidade que se define como “incel” (celibatários involuntários), cujos membros mais radicais defendem a prática de assassinatos em massa para se vingar de seu isolamento pela sociedade.
O diretor Todd Phillips observou que o debate se agigantou antes mesmo que as pessoas tivessem a chance de assistir ao filme, com muita gente tomando posições enfáticas de um lado ou de outro. À Associated Press, ele se disse frustrado e espantado por perceber que “a extrema-esquerda pode se parecer demais com a extrema-direita”.
O fato é que a interpretação notável de Joaquin Phoenix, que já teve três indicações ao Oscar, mas nunca venceu, é capaz de criar uma relação positiva entre público e o personagem, que não deixa de ser o vilão sanguinário já conhecido de outras tramas, mas agora com um protagonismo inédito no cinema. Para o papel, Phoenix emagreceu aproximadamente 23 quilos, um tipo de esforço que Hollywood tende a valorizar.
No filme, a violência do Coringa é entendida por muitos personagens como uma resposta dos oprimidos contra os poderosos, capaz de criar grande catarse e uma onda de protestos violentos. O barulho provocado pela relação entre Coringa e a violência foi suficiente para fazer a polícia de Los Angeles divulgar um reforço nos efetivos próximos aos cinemas onde o filme será exibido, embora oficialmente declare que “não há ameaça iminente”.
Além disso, grandes redes de cinemas dos Estados Unidos, como a Landmark e a AMC, vão proibir em todo os país a entrada nas salas de espectadores usando máscaras, maquiagens ou fantasias. Tamanho receio tem a ver ainda com um episódio ocorrido há sete anos, em Aurora, Colorado, quando um homem abriu fogo em um cinema que exibia Batman – O Cavaleiro das Trevas ressurge, matando 12 pessoas e deixando 70 feridas. Ao ser detido, James Holmes, o responsável pelo massacre, se identificou às autoridades como "Coringa".
Antes da estreia do longa dedicado ao vilão, famílias das vítimas de Aurora publicaram uma carta lembrando à Warner que “junto com um grande poder vem também uma grande responsabilidade”. As famílias das vítimas responsabilizaram o estúdio por eventuais novos ataques como o de Aurora, pelo fato de promover a história do Coringa. Eles ainda cobram do estúdio doações para vítimas da violência causada por armas.
O estúdio respondeu dizendo que “a violência armada em nossa sociedade é uma questão crítica e estendemos nossa mais profunda simpatia a todas as vítimas e famílias afetadas por essas tragédias”. A Warner afirmou ainda que “a empresa tem uma longa história de doações para vítimas de violência, incluindo Aurora, e, nas últimas semanas, nossa empresa-mãe se juntou a outros líderes empresariais para convidar os formuladores de políticas a promulgar legislação bipartidária para lidar com essa epidemia”.
O tema já provocou desconforto também com o astro principal. Em Veneza, Joaquin Phoenix chegou a declarar que gostava de que o “filme criasse empatia por alguém que é o vilão e que faz coisas horrendas”, porque “às vezes, rotulamos uma pessoa como má, como se fôssemos incapazes dos mesmos atos”.
Algumas semanas depois, o ator abandonou uma entrevista para o diário britânico The Telegraph quando o repórter lhe perguntou se ele não considerava a hipótese de seu personagem inspirar outras pessoas a cometer os mesmos atos. Ao deixar a entrevista, Phoenix se desculpou dizendo não estar preparado para esse tipo de pergunta.
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