Como ela se sentiu quando viu a anódina Gwyneth Paltrow ganhar um Oscar em seu lugar? Qual foi a sensação de atuar pela primeira vez ao lado da filha? O que passou por sua cabeça no momento em que o médico lhe disse que o marido tinha um tumor no pulmão?
Nada disso você saberá pela leitura de Prólogo, ato e epílogo, o livro de memórias de Fernanda Montenegro, escrito com a colaboração de Marta Góes e lançado pela Companhia das Letras. Mas percorrerá, ao lado da dona das lembranças, esses três (e muitos, muitos outros) episódios, à maneira dela.
Ou seja, eles serão vistos com um olhar generoso sem ser ingênuo e contados com uma dicção particular, que fortalece passagens inesperadas e estabelece pontes entre elementos aparentemente divorciados.
Dedicado aos netos de Fernanda e aberto com a história da chegada de seus antepassados italianos ao Brasil, o livro deixa claro, desde a primeira página, que a grande dama do teatro brasileiro enxerga sua história com a perspectiva de um antes, um agora e um depois.
As polpudas informações sobre os colegas com quem Fernanda dividiu os palcos são outro atestado de que a atriz vê sua carreira como produto de um contexto e um esforço coletivos. Embora o resultado seja absolutamente singular, e isso também ela não ignora.
O maior elogio a Fernanda Montenegro que Prólogo, ato e epílogo contém está na página 170 e consiste num depoimento escrito por Gianni Ratto (1916-2005) por ocasião dos 50 anos de carreira da atriz. Ratto afirma que “Fernanda é hoje, talvez, a única atriz que a cultura, filtrada por sua sensibilidade, torna independente de influências ou teorias transitórias, situando-a num plano completamente à parte no campo das grandes intérpretes-criadoras. Não se trata aqui de estabelecer se ela é a maior ou a melhor, isso não vem ao caso. O que eu quero dizer é que Fernanda é realmente um fenômeno a ser considerado isoladamente mais do que no contexto geral da arte teatral”.
E exemplifica, em 50 anos de palco, com uma única cena, da montagem de Eurídice, de Jean Anouilh, dirigida por ele em 1956, na qual a atriz não diz uma palavra, mas cria um “esplêndido e inesquecível momento, no qual passava no fundo do palco, alterando todo um clima dramático com uma simples parada e um olhar”.
Antes de chegar a esse ponto, as Memórias de Fernanda percorrem a história de sua relação com o diretor Gianni Ratto – como ela aprendeu a admirar seu rigor incomum, como ele se tornou uma espécie de guru artístico para ela, Fernando Torres e seu Grupo dos Sete, como romperam a parceria profissional (num rompante de Ratto) e se afastaram. Não há referência a mágoas e ressentimentos, embora seja de se imaginar que, durante algum tempo, tenha havido um bom bocado de ambos.
E não é apenas no caso de Gianni Ratto que o livro deixa de se ocupar do lado sombrio das relações. Ao contar sua história, Fernanda preferiu ressaltar as construções, não as ruínas. Reservou palavras de afeto e gratidão para quem estabeleceu com ela belas parcerias profissionais (lembra “saudosa” os trabalhos feitos com Luiz Fernando Carvalho, no caso da TV) ou humanas (a Edson Celulari ela dirige “um eterno agradecimento” pelo “ombro amigo, a mão estendida” durante a turnê de Fedra, quando a saúde de Fernando Torres já cambaleava).
POLÍTICA
Prólogo, ato e epílogo cita as duas vezes em que Fernanda Montenegro foi convidada – e recusou – a assumir a pasta da Cultura na Esplanada dos Ministérios. Mas é sua atuação sobre o palco e nos bastidores da política cultural no período mais cinzento dos anos de chumbo que contém revelações surpreendentes, como a de um atentado de que ela foi alvo, em São Paulo, em 1979, durante a temporada de É... (Millôr Fernandes).
Suas relações com os dramaturgos Millôr Fernandes (1923-2012) e Nelson Rodrigues (1912-1980) estão contempladas, incluindo uma saborosa descrição de quanta insistência lhe custou arrancar do segundo, que se referia a ela como a “Musa Sereníssima”, o texto de O beijo no asfalto. Mas é uma comovente troca de cartas com o ator Paulo Autran (1922-2007), já no fim de sua vida, que dá a medida do afeto de Fernanda por seus pares, deles por ela e da aguda tristeza que é ver uma geração de artistas imensos se despedindo dos palcos e da vida.
Não só o adeus a Paulo Autran, mas também a morte precoce de Domingos Montagner (1962-2016) doeu em Fernanda, por ver se apagar um ator que “transmitia uma ‘transcendência’ de herança cênica”, que tinha “uma disponibilidade física que alcançava do palhaço ao rei” e estava “pronto para um Shakespeare, um Molière, um Gil Vicente”.
Não são poucas as vezes em que a trajetória de Fernanda Montenegro tem em Minas Gerais um ponto de destaque. Foi de um fazendeiro dono de terras em Passagem de Mariana que a família da atriz conheceu o primeiro gesto de hospitalidade no Brasil.
Vindos da Itália, em 1897, em busca de trabalho e riqueza nas fazendas de café de Minas, encontraram descaso, hostilidade e privação logo após o desembarque no porto brasileiro. E perambularam como retirantes, até que o fazendeiro de Minas lhes cedeu um pedaço de terreno, onde puderam se recompor – para mais tarde seguir viagem.
A persistência diante das adversidades e a disposição para buscar incessantemente construir para si uma história melhor marcam o Prólogo do livro e também a personalidade de Fernanda, que descreve com gosto sua origem e seus hábitos de juventude “suburbanos” e o orgulho de ser uma artista mambembe.
Leia Mais
Diamantina recebe Festival de História com homenagem a Darcy RibeiroLivreiro do Alemão defende literatura democratizada'Para os africanos, já houve vários fins do mundo', afirma Mia CoutoEscritor Laurentino Gomes lança livro sobre 'o assunto mais importante do país'Cisão política é pano de fundo de 'Essa gente', novo livro de ChicoLivro revela amizade epistolar de Drummond com poeta pouco mais velhoWander Melo Miranda lança 'Os olhos de Diadorim' neste sábado (19) em BHRomances abordam o suicídio pela perspectiva da dor dos que ficamLivro narra conquistas e deslizes do vice-rei da música brasileiraSaiba por que Peter Handke é o Nobel que incomoda muita genteEscritor Laurentino Gomes lança 'Escravidão' nesta quarta (9) em BHFoi também na capital mineira que, muitos anos mais tarde, já nacionalmente conhecida como Fernanda (nome “que tinha um clima de romance do século 19”) Montenegro (como o “médico de subúrbio” capaz de curas milagrosas), ela ouviu um conselho da amiga médica Lúcia Mendes que levou à revisão do tratamento de Fernando Torres. O ator recebera um diagnóstico e uma prescrição de medicamentos equivocados depois de experimentar uma “pane” em pleno palco.
Numa entrevista ao Estado de Minas, em julho passado, a escritora Marina Colasanti afirmou que “os 80 anos nos avisam que estamos chegando ao quilômetro final da maratona”.
Prestes a completar 90, Fernanda Montenegro escreve o Epílogo de seu livro com essa consciência e chega a uma conclusão digna de aplauso: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”.
TRECHOS
A NOITE DO OSCAR
"Na noite da premiação, no Dorothy Chandler Pavilion, Ian McKellen, que também fora premiado pelo National Board of Review, voltando para o seu lugar depois de um break da cerimônia, aproximou-se de mim e, muito gentil, perguntou: 'Você sabe quem eu sou?'. Como aquele ator glorioso, referencial do teatro inglês, podia achar que eu não o conhecia? Respondi: 'Claro que sei quem você é!'. E ele, sério, olho no olho, muito cúmplice, acrescentou: 'Espero que você ganhe' – 'I hope you win'. Eu, igualmente cúmplice, respondi: 'Eu também espero que você ganhe'. Por coincidência, nenhum dos indicados que sentara naquela fila de cadeiras, à esquerda da plateia, foi contemplado.Para mim, estar ali foi uma ficção. Digo isso sem diminuir em nada o valor do nosso filme no seu todo. Como aventura de vida, há um antes, um durante e um depois de Central do Brasil. Foi uma viagem mágica. Terrível e bela. Penso que conseguimos, Walter e eu, cada um a seu modo, sair melhor do que entramos. Como artistas e seres humanos. Esse 'além-fronteira' na arte do cinema me alcançou através dele. A sua sensibilidade e a extrema qualidade votiva de sua direção é que me fizeram chegar até a Berlinale e aquele maravilhoso não Oscar."
O DIAGNÓSTICO DE FERNANDO TORRES
"Em janeiro de 2008, depois de Fernando passar por um exame geral, me informaram, em particular, que havia um tumor num de seus pulmões. Guardei comigo a triste notícia. Nenhuma palavra, nem a ele nem aos filhos. O médico achou que, no seu caso, a doença já bastante avançada, a quimioterapia seria um sofrimento inútil diante da nicotina armazenada em seus pulmões. Fazia já muitos anos que tinha parado de fumar. Resolução que não fora nada fácil. Mas houve um dia em que, indignada diante de mais um maço de cigarros, comecei a gritar, em protesto, como nunca havia gritado – e como jamais voltaria a fazer. Fui uma valquíria wagneriana por cima de uma orquestra de 120 músicos. Morávamos num apartamento. Ele me olhou com muita calma e, com mais calma ainda, pegou o maço e jogou pela janela. E nunca mais fumou. Foi um desses gestos que pacificam ou até anulam, entre dois seres humanos, todos os impasses, todas as crises. Presentes, passadas e futuras."
Prólogo, ato e epílogo – memórias
. De Fernanda Montenegro (com a colaboração de Marta Góes)
. Companhia das Letras (344 págs.)
R$ 49,90