Em seus anos de Brasil, Frans Krajcberg (1921-2017) aprendeu a conhecer e a amar esse país. Polonês, tornou-se um artista brasileiro, mas nunca dominou a língua. Falava um português de estrangeiro e, no caso do documentário de Regina Jehá em cartaz no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, ainda fala pausadamente, com dificuldade, porque estava muito debilitado. De cara, Regina informa que está chegando à casa dele com uma equipe de filmagem e não sabe como será recebida. Ele está sentado, convalescendo. Conversam, e Regina ganha autorização para acompanhá-lo.
Vale a pena seguir o artista em sua jornada final. Regina entrevistou-o em 2016, ano anterior à sua morte. Krajcberg em casa, no ateliê, preparando sua participação na 32ª Bienal de São Paulo, que o homenageou. O artista fala de suas perdas – veio para o Brasil fugitivo do nazismo – e briga com a organização da Bienal, porque o espaço que lhe foi prometido não é exatamente o que ele está tendo para expor suas obras. Uma tomada particularmente bela mostra-o na cadeira de rodas, sendo levado embora, enquanto as pessoas chegam para assistir à exposição.
Frans Krajcberg: Manifesto é sobre Krajcberg, mas recusa todo didatismo. "Não é me prendendo a datas que vou conseguir abordar o homem e o artista que ele foi", diz a diretora. Mas está tudo lá. O filme dá uma ideia de suas peregrinações, mas é muito mais Krajcberg visto pela diretora.
Ele se alistou no Exército soviético, combateu o nazismo. Foi amigo de artistas em Paris – Léger, Mondrian, Chagall. Veio para o Brasil em 1948 e, no começo dos anos 1950, ajudou na montagem da 1ª Bienal. Era pintor, mas algo se passou quando descobriu a natureza no Brasil, e a Amazônia. A bidimensionalidade da pintura não dava mais conta da sua estética. Tornou-se não apenas um escultor – brutalista –, mas também um defensor da floresta e dos povos indígenas.
ARQUIVO O título – Manifesto – dá conta dessa luta de Krajcberg. Em 1978, fez uma viagem pelo Rio Negro com amigos – o artista Sepp Baendereck e o crítico de arte Pierre Restany –, que resultou na criação do Manifesto do Rio Negro ou Manifesto do Naturalismo Natural. Regina usa material de arquivo para dar voz ao manifesto, mas o próprio filme é outro manifesto (dela), em defesa da grande floresta.
Considerando-se que o filme demorou anos para ser feito, é no mínimo curioso, até irônico, que chegue ao circuito no momento em que as queimadas no Brasil alcançam ressonância internacional. O filme acompanha Krajcberg em áreas incendiadas, muito próximo ao fogo. Sua angústia é transparente. Ele chora a ignorância e a violência. Denuncia o lucro, as madeireiras, a exploração da monocultura. Tinha câncer de pele, e a exposição ao calor lhe era muito prejudicial, mas, como um profeta, avança bradando contra a barbárie.
Walter Salles dedicou-lhe um documentário revelador – O poeta dos vestígios. Entendeu que, em Krajcberg, o artista e o homem e o cidadão eram indesligáveis. A obra é toda ela essa poética dos vestígios que o homem deixa como registro de sua passagem pela Terra. Toda a parte, digamos, didática que não aborda no filme, Regina Jahé transformou numa exposição em cartaz em um cinema paulista. São complementares, o filme e a exposição.
Sem cronologia, Manifesto dá conta dessa personalidade grandiosa. As expedições à Amazônia, o ateliê Natura, que ele montou num sítio do Sul da Bahia, a militância ecológica, o amor pelo Brasil. Não era o fato de não dominar o português que fazia dele menos “brasileiro”. Ver o filme, ler os textos, olhar as fotos permite avaliar quanto essa luta é urgente. Não é por acaso que a questão do meio ambiente está mobilizando multidões em todo o mundo.
Virou luta das pessoas de bem, a única, talvez, a ultrapassar rótulos políticos. Dela, depende o futuro, dizem Krajcberg e Regina, em seus manifestos. A beleza de Frans Krajcberg: Manifesto está nesse registro íntimo e pessoal, que só a ligação do artista com a diretora tornou possível. Como diz o texto de apresentação do filme, o documentário é "o retrato de um homem extraordinário, preso na história, engajado em sua arte e profundamente vivo para sempre". (Agência Estado)
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