Rag (Anna Pniowsky) está em êxtase. Encontrou no armário uma saia rosa e uma jaqueta jeans, cheia de broches brilhantes. De arco na cabeça, vai se mostrar ao pai (Casey Affleck). Ele manda a menina tirar a roupa imediatamente e voltar às velhas vestimentas – uma calça larga, um moleton que já viu dias bem melhores e um boné. Rag se irrita. Que problema há, se só eles estão ali? O pai está irredutível.
No momento em que esta cena é exibida em A luz no fim do mundo, que chega aos cinemas nesta quinta (17), o público já consegue compreender o porquê das negativas que o pai constantemente apresenta à filha. Em um mundo apocalíptico, em que uma peste matou todas (ou quase todas) as pessoas do sexo feminino – crianças, jovens e velhas, independentemente de raça ou origem social –, o fato de aquela menina ter sobrevivido até o início da adolescência representa quase um milagre.
E o pai quer mantê-la como está, até quando for possível. Rag não pode ser quem ela é. Para os poucos homens com quem a dupla cruza em seu caminho, ela é o garoto Alex.
Escrito, dirigido e protagonizado por Casey Affleck, A luz no fim do mundo, em um momento inicial, parece conversar com thrillers recentes que mostram pais e filhos tentando sobreviver num ambiente hostil, como Um lugar silencioso e Caixa de pássaros (ambos de 2018). Mas não. Ainda que a privação – no caso, uma menina ter uma vida normal, como a de qualquer garota – seja uma questão recorrente, a relação entre pai e filha é o foco da questão.
Arca de Noé
O longa é aberto com um prólogo em que o pai, Caleb, conta para a filha uma história baseada na Arca de Noé. Só que, nesse caso, é uma raposa fêmea – a última de sua espécie – a protagonista. Os dois estão juntos em uma barraca no meio de uma floresta, e as intervenções da menina mostram o quão Rag é esperta – e que a vida nômade e solitária em nada prejudicou o desenvolvimento da garota.
Aos 13 anos, Anna Pniowsky demonstra uma segurança e um carisma em cena que sua interpretação tocante, doce, por vezes engraçada, torna-se a principal razão para o filme. Affleck, que levou seu primeiro Oscar por um personagem melancólico e calado, repete a atuação de Manchester à beira-mar (2016).
Com a morte da mãe – Elisabeth Moss, em não mais do que duas cenas apresentadas em flashback –, o pai destinou todas as suas forças em educar a menina. A peste não apenas exterminou as mulheres, mas também deixou o que restou da humanidade à beira da selvageria. Qualquer mulher que tenha sobrevivido é vítima de ataques.
Affleck filma a história sem pressa. Vivendo longe das cidades em situação precária – são os dois e um par de mochilas em meio a florestas e lugares gélidos –, eles só se encontram com outros homens quando precisam de provisões. Rag consegue ter como luxos livros que pega em bibliotecas abandonadas. A cada novo lugar o pai estuda minuciosamente um possível caminho de fuga e passa para a filha até que ela aprenda cada detalhe. Em meio a esta (sobre) vida, ele nunca se nega a demonstrar afeto – seu amor, ele diz, é maior do que qualquer outra coisa.
A tensão pelo desconhecido vai num crescente. Na parte final, quando os dois parecem ter encontrado paz, a chegada inesperada de um grupo de homens vai ser o estopim para um acerto de contas. E a solução encontrada pelo ator-diretor-roteirista é a melhor possível. Não há finais felizes. Há finais possíveis.