Quinhentos anos depois da morte de Leonardo da Vinci, o Museu do Louvre inaugurou na última quinta-feira (24) a maior exposição organizada sobre a obra do gênio renascentista. No total, 162 pinturas, desenhos, manuscritos, esculturas e outros objetos foram reunidos, após um trabalho de pesquisa que durou 10 anos. Apenas 11 dos quase 20 quadros atribuídos ao artista estão presentes na mostra, mas todos são magistralmente valorizados pelas demais obras que os cercam e contribuem para explicar os trabalhos.
"Ele não publicou nada, pintou pouco e seus quadros ficaram inacabados. Mas as pessoas ficam fascinadas. Sua obra é um reflexo de sua vida", afirma Vincent Delieuvin, do departamento de pinturas do Louvre de Paris e um dos curadores da mostra. A exposição ficará em cartaz até 24 de fevereiro e a visitação é feita mediante reserva prévia. Até o momento, foram reservados 260 mil ingressos para a exposição. Ao lado da mostra sobre Tutankamon, que recebeu 1,4 milhão de visitantes, a exposição sobre Da Vinci será o grande evento cultural do ano na França.
A Mona Lisa, sua obra mais famosa e símbolo do Louvre, não faz parte da mostra, mas poderá ser observada na Sala dos Estados, a poucos metros do espaço reservado para a exposição. O visitante, com a ajuda de um capacete, pode admirar o sorriso enigmático da obra em uma breve montagem de realidade virtual que restaura sua luminosidade inicial, sem o tom amarelado que adquiriu com o passar do tempo.
A retrospectiva foi construída de forma didática e pretende ser uma espécie de viagem à rica personalidade do pintor italiano protegido pelos príncipes, já muito famoso e admirado quando estava vivo. Um personagem que sempre foi objeto de lendas, livros e fantasias.
Os espetaculares desenhos e os apaixonantes croquis estão entre os destaques da exposição, assim como as obras de outros artistas renascentistas. Situam o autor em uma época agitada, que passa por Florença, Milão, Mantua, Veneza, Roma e, finalmente, França.
INFRAVERMELHO
Graças a uma reflectografia de infravermelho, é possível examinar as diferentes etapas da concepção e elaboração dos quadros. Leonardo trabalhava suas obras, às vezes, durante 15 anos e as deixava inacabadas. Cada pintura é uma história, geralmente com vários significados, símbolos, dúvidas e segredos. Cada gesto, cada dedo significa algo. A expressão dos sorrisos tem mil interpretações. Na obra São João Batista, por exemplo, o sfumato (técnica que atenua os contornos e os detalhes) faz com que o profeta que anuncia a vinda de Jesus Cristo "saia da escuridão e retorne ao mesmo tempo à sombra" uma vez que sua mensagem foi proclamada, destaca Vincent Delieuvin. "Um significado poderoso e uma técnica deslumbrante", comenta.
Muito exigente, Leonardo queria colocar a ciência a serviço da pintura para oferecer a visão mais precisa e mais profunda possível do homem e da natureza.
O Louvre insiste em que a exposição deseja mostrar que a pintura era essencial e não secundária para Leonardo da Vinci; que era a culminância visual de suas pesquisas científicas, e não o contrário. Leonardo foi um sábio e um gênio, mas também um utópico, um homem com curiosidade por tudo, que buscava uma explicação para a essência da vida, para expressá-la depois, o mais fielmente possível, em um quadro ou desenho.
A mostra não se aprofunda na condição de sábio de Leonardo. Seu leão mecânico, exposto no Instituto Cultural Italiano de Paris, não está na exposição do Louvre.
Uma batalha diplomática entre Paris e Roma precedeu a inauguração da mostra. O governo da Itália se mostrou relutante a emprestar obras de Leonardo da Vinci à França e alegou que, apesar de ter morado os últimos três anos de sua vida na França, era um artista italiano.
Finalmente, a justiça italiana autorizou o empréstimo do famoso Homem Vitruviano, do acervo permanente da Academia de Veneza. Outros empréstimos chegaram de outros museus italianos, do Museu Hermitage de São Petersburgo, do Metropolitan Museum de Nova York, do British Museum, do Vaticano e de coleções inglesas, incluindo a da rainha da Inglaterra, que liberou 24 desenhos. (AFP)
VIDA MISTERIOSA
INFÂNCIA
Nascido fora do casamento, um bastardo, afetivamente infeliz, mas não materialmente (vem de uma família rica da Toscana), logo se apaixonou pelas ciências naturais. Seu gosto pela ciência foi, talvez, uma maneira de escapar de uma realidade dolorosa, segundo ele próprio analisou. Freud se interessou por sua juventude em seu ensaio Uma memória de infância de Leonardo da Vinci, no qual tenta decifrar o inconsciente do artista.
HOMEM BONITO
Muito rapidamente, assim que se estabeleceu em Florença, descobriu o ateliê do famoso Verrocchio e frequentou os poderosos. De acordo com Louis Frank, um dos curadores da exposição do Louvre, era "um homem alto, forte, muito bonito, lúcido e melancólico", que "gostava de falar sobre o que estava fazendo. Sua abordagem era muito racional e nada esotérica". Ele se vestia de uma maneira que o fazia ser notado. Além disso, não havendo necessidade, materialmente assistido por mecenas e príncipes, "ele tinha basicamente tempo, e sabia aproveitá-lo".
HOMOSSEXUALIDADE
Sua homossexualidade foi muito comentada. Inclusive com alguns de seus retratos de mulheres, bastante andróginas. Ele chegou a ser acusado em Florença de "sodomia" com um garoto de programa. Falou-se de um caso com seu assistente Salai e outros jovens. Mas nada foi provado. "De fato, não sabemos quase nada sobre sua vida privada. Ele não deixou nenhum documento, enquanto escrevia textos muito bonitos", diz Frank.
TRABALHO NA CORTE
Seu verdadeiro trabalho era o de organizar espetáculos extraordinários para os príncipes e sua corte. "Era tarefa dele entreter, contar histórias, era muito divertido", diz o curador. Ele dedicou muito do seu tempo a isso.
PESQUISADOR
Também existiu o pesquisador nato, apaixonado. Pesquisas em anatomia, botânica, mecânica, astronomia, arquitetura. Ele queria entender o interior dos fenômenos. "Tinha um intenso sentimento da efemeridade das coisas, da destruição universal. Estimava que os quatro elementos – terra, ar, fogo, água – queriam retornar ao caos inicial", afirma Pierre Frank.
INSPIRAÇÃO MÍSTICA
Os temas religiosos da Salvação – em torno da Virgem Maria, Santa Ana, São João Batista, Cristo "Salvator Mundi", São Jerônimo – o inspiraram profundamente. Era crente, mas não piedoso. Em sua I, ele colocou muita humanidade, humanismo: a Virgem deve segurar seu filho ou deixá-lo partir para o seu destino?
CORPOS E MÁQUINAS
O corpo humano, suas proporções, sua harmonia ou sua desarmonia, o rosto, suas expressões o fascinam. Assim, seu Homem Vitruviano define as proporções do corpo. Suas descobertas científicas, que ele desenhou nos vários esboços de seus codex, foram fontes de inspiração para os cientistas. Às vezes, suas máquinas são puramente utópicas. Ele certamente sonhava em voar. A serviço do condottiere Borgia, passou um tempo como engenheiro militar e elaborou planos para máquinas de guerra. Mas o que o fascinava especialmente era a botânica, algo retratado até o fim de sua vida, perto de Amboise. Ele gostava do estudo da luz, relevos, plantas, animais. Isso deu, em suas pinturas, profundidade, detalhes extremamente bem estudados, mesmo que os personagens concentrem a atenção.
PINTOR GENIAL
Todo o conhecimento de uma vida ele despejou em sua busca pictórica por rostos, expressões, vibrações que emanam das silhuetas (ele vai privilegiar a técnica do "sfumato"). Deixava partes inteiras inacabadas para destacar o essencial. "Quanto mais ele avançava em sua carreira, mais se concentrava na própria expressão. Suprime para colocar em destaque os rostos e a expressão dos sentimentos humanos", ressalta outro curador, Vincent Delieuvin. Como se ele sentisse com a idade a necessidade de ir direto ao ponto. Para Leonardo, "a pintura deve restaurar a verdade do ser humano, sua anatomia, as paixões da alma, mas também o mundo", diz ele.
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