Na mitologia grega, Sísifo era considerado o mais astuto de todos os mortais. Foi o fundador e primeiro rei de Éfira, depois chamada Corinto, onde governou por diversos anos. Por sempre tramar e desafiar os deuses, acabou sendo condenado a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. A razão alegada para a punição é que não existia nada mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
“Se a gente for analisar, aquela imagem dele subindo e descendo sem parar é uma espécie de GIF mitológico, o primeiro GIF da humanidade (GIF é um formato de imagem que pode compactar várias cenas e com isso exibir movimentos). É uma coisa cíclica, repetitiva. É meio o que está acontecendo na nossa vida hoje”, afirma o ator, humorista, roteirista e escritor Gregório Duvivier, que apresenta o monólogo Sísifo neste fim de semana, em Belo Horizonte.
Restam poucos ingressos para as três sessões (uma na sexta e duas no sábado) no Teatro Sesiminas. Duvivier celebra o sucesso do espetáculo, que vem de temporadas com casa cheia no Rio de Janeiro e em São Paulo. “Confesso que até me surpreendi um pouco com tudo isso. Não é uma comédia, nem um stand up. É uma peça que pega como mote esse mito grego e que tem a ver com o que está acontecendo. Acho que as pessoas estão indo e gostando, justamente porque fala de algo contemporâneo”, diz.
''O espetáculo conecta a mitologia ao caótico mundo hiperconectado e ao Brasil dos GIFs e memes. Ele faz uma grande mistura com a nossa vida de hoje. O meme, se você for analisar, pode ser usado para tudo. Não só para fins meramente cômicos, mas para a gente entender a sociedade em que vivemos. Tudo vira meme, e ele se transformou em uma ferramenta importantíssima de leitura da realidade''
Gregório Duvivier, ator e escritor
O artista ressalta o mérito do coautor, o também ator, diretor e dramaturgo Vinícius Calderoni, que teve a sacada de perceber o viés da internet na história de Sísifo. “O espetáculo conecta a mitologia ao caótico mundo hiperconectado e ao Brasil dos GIFs e memes. Ele faz uma grande mistura com a nossa vida de hoje. O meme, se você for analisar, pode ser usado para tudo. Não só para fins meramente cômicos, mas para a gente entender a sociedade em que vivemos. Tudo vira meme, e ele se transformou em uma ferramenta importantíssima de leitura da realidade”, avalia.
No palco, o ator repete o mesmo movimento: caminha de um ponto a outro de uma rampa. A cada início de uma nova cena, ele retorna ao ponto inicial, como em um GIF. No trabalho de desenvolvimento dessa solução cênica foram incorporadas outras características das novas formas de comunicação. “A peça reúne vários personagens que se cruzam. Em um curto espaço de tempo, elas são obrigadas a repetir aquela situação, como se estivessem presas dentro de um movimento. A travessia final talvez seja a grande protagonista da história”, pontua.
Ao longo da história, Duvivier lembra tragédias e traumas recentes do país, como os rompimentos das barragens de Mariana e do Córrego do Feijão, em Brumadinho, o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro e o assassinato da vereadora Marielle Franco.
“Sísifo é muito brasileiro. A gente está o tempo inteiro vendo os nossos direitos sendo desmontados, barragens sendo construídas e desmoronando. Esse ciclo de rompimento de direitos está presente ao longo de toda a nossa trajetória. O Brasil está sempre recomeçando da estaca zero, como se estivesse preso dentro da sua própria história.”
A montagem marca a estreia da parceria entre Vinícius Calderoni e Gregório Duvivier, embora os dois já venham há algum tempo desenvolvendo outros trabalhos juntos, como um longa-metragem. Um dos criadores do canal do YouTube Porta dos Fundos – o sexto maior do Brasil –, Duvivier observa que a mistura de gêneros é característica do trabalho de Calderoni e diz que isso também se nota em Sísifo.
“As pessoas vão rir, se divertir, mas também vão refletir, parar para pensar. Vinícius consegue mesclar muito bem essa coisa do drama e da comédia. E há também espaço para a poesia. Eu, particularmente, adoro essa confusão de gêneros. Escrevo crônicas, poesias, esquetes para o Porta e adoro tudo.”
DESMONTE
Duvivier afirma que “é muito triste o que o governo está fazendo com a classe artística – esse desmonte de qualquer política cultural, censura”. Embora o contexto mais amplo seja desfavorável, Duvivier está num ritmo de trabalho cada vez mais intenso.
Além da peça, ele comanda há dois anos o Greg news, talk-show na HBO premiado pelo segundo ano consecutivo com o troféu de melhor roteiro de programa de humor da Associação Brasileira de Roteiristas. Além disso, ele está também no elenco do longa A vida invisível, de Karim Aïnouz, que é o representante brasileiro no Oscar 2020, tentando uma indicação a melhor filme internacional.
“Sou muito fã do Karim, mas não imaginava que o filme tivesse essa repercussão tão grande. Eles está ganhando o mundo, e tenho certeza de que vai ter uma recepção muito boa aqui no Brasil também”, diz. A estreia do filme na Região Sudeste está prevista para o próximo dia 21.
A produção se passa no Rio de Janeiro dos anos 1950 e conta a história das irmãs Guida (Júlia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte), que se veem separadas e impedidas de viver os sonhos que alimentaram juntas, quando ainda eram adolescentes.
O ator conta que o público tem se emocionando muito nas sessões (em festivais e pré-estreias) e supõe que a conexão estabelecida com a plateia tenha a ver com um aspecto de ancestralidade, pelo fato de a temática abordar a vida íntima de mulheres da geração das avós de Duvivier, por exemplo.
Na trama, ele é Antenor, marido de Eurídice, um homem extremamente machista que sufoca a esposa e não a deixa seguir seu sonho de ser pianista. “Ele é abjeto, um péssimo marido. Mesmo que a história se passe nos anos 1950, a gente ainda vê muitos Antenores por aí hoje. Essa coisa da masculinidade tóxica, a invisibilidade da mulher, infelizmente, ainda se fazem presentes. Mas é um personagem extremamente interessante e, particularmente, foi difícil fazê-lo. A tarefa do ator é tornar humana esse tipo de figura, tentar compreendê-lo dentro desse contexto”, diz.
Sísifo
Monólogo com Gregório Duvivier. Sexta (1º), às 21h, e sábado (2), às 17h e às 20h, no Teatro Sesiminas – Rua Padre Marinho, 60, Santa Efigênia. (31) 3241-7181. Ingressos: R$ 70 (inteira) e R$ 35 (meia). Classificação: 16 anos. Vendas: bilheteria do teatro e pelo site Tudus.
CONVITE AO LOYOLA
Gregório Duvivier vai aproveitar sua passagem por Belo Horizonte e participará de um “grande encontro contra a censura”, como definiu, a ser realizado na Praça Duque de Caxias, em Santa Tereza, no sábado (2), às 11h.
O evento terá a participação de artistas locais. Além de debates, haverá sarau, leitura de textos e apresentações musicais. O ator diz que também gostaria de contar com a presença de pais, estudantes e da direção do Colégio Loyola.
No começo de outubro, uma prova de português da instituição formulada a partir de uma crônica de sua autoria foi anulada, após reclamações de algumas famílias de estudantes, descontentes com a posição política do texto e de seu autor.
“Não me surpreendeu o fato de alguns pais reclamarem, porque pai de aluno sempre reclama. Mas o que me surpreendeu foi a escola acatar a queixa de uma parcela só deles, já que a maioria protestou contra a decisão, fez atos em repúdio à censura. Muitos entraram em contato comigo. Escola não é para formar ou criar gado, mas para formar cidadãos, sujeitos com senso crítico e que tenham a capacidade de ler o mundo”, afirma.