O haik é uma tradicional vestimenta feminina do Magrebe, a parte ocidental do mundo árabe. Geralmente branco, é um tecido retangular de grande extensão, de algodão ou seda, em que as mulheres se enrolam, cobrindo o corpo para sair de casa. O hijab é o véu que cobre a cabeça e o peito, usado por muçulmanas na presença de qualquer homem fora de sua família imediata.
Dependendo da escola de pensamento islâmico, o hijab pode ser radicalizado na temível burca. Grupos extremistas como Talibã e Estado Islâmico o tornaram obrigatório, de cor escura, cobrindo também o rosto da mu- lher. A jovem Nedjma (Lyna Khoudri) aprende, de maneira dura e drástica, a diferença entre as duas vestimentas. Elas acabam sendo utilizadas como metáfora para o avanço do radicalismo islâmico no filme Papicha, que estreia nesta quinta (31), no Belas Artes.
Candidato da Argélia a uma vaga na categoria filme internacional do Oscar 2020, o primeiro longa-metragem de Mounia Meddour acompanha as mudanças que seu país sofreu durante a Guerra Civil argelina (1991-2002), que deixou 150 mil mortos. Na ação proposta pela diretora, ambientada no mesmo período, a história se desenrola em poucas semanas.
Nedjma é uma estudante universitária de Argel que tenta viver como qualquer pessoa de sua idade. Na sequência inicial, ela e a amiga Wassila (Shirine Boutella) saem da faculdade, tomam um táxi clandestino, maquiam-se, fumam e colocam roupas coloridas ouvindo Get up (Before the night is over), hit oitentista do grupo de dance music Technotronic.
Só que nada é tão simples na Argélia daquele período. O carro é parado bruscamente por policiais. As garotas mentem, dizem que vão para casa. Liberadas, chegam a uma boate. Antes de ir para a pista, Nedjma, boa costureira, vai para o banheiro levar os vestidos brilhantes que vende para as frequentadoras do local. Na volta para o prédio da faculdade onde vivem, elas descobrem cartazes afixados dizendo da obrigatoriedade de mulheres usarem uma versão radical do hijab.
A partir dessa introdução, Papicha coloca sua protagonista num turbilhão de acontecimentos. A universidade feminina em Argel é o microcosmo do que se passa no país. A intolerância religiosa que se aproxima vai eliminando todos os direitos das mulheres. Elas não devem estudar. Wassila evita contar ao namorado conservador que está fazendo graduação.
Mulheres fundamentalistas, cobertas de preto, invadem o quarto das universitárias, quebrando tudo o que veem pela frente. No café da manhã, o copo de leite é servido com um composto criado a partir do (elemento químico) bromo – acredita-se que pode reprimir desejos sexuais. Um muro será construído na universidade, tirando a liberdade das alunas de ir e vir.
DESFILE
Nedjma tenta burlar todas as proibições. Quando a loucura extremista chega à sua família, decide, como símbolo de sua luta pela resistência, fazer um desfile com haiks modernos que ela mesma desenhou. O caminho até ali não será fácil – gravidez indesejada, brigas com o namorado e com a melhor amiga, situações comuns em qualquer lugar e época são transpostas para o universo em que uma jovem tem que subornar o porteiro (e se sujeitar a ser abusada por ele) para poder sair para a rua.
Papicha é apresentado como um filme “baseado em eventos reais”. Em entrevistas, Mounia Meddour afirmou que as situações vividas pelas personagens foram vivenciadas por todas as jovens universitárias argelinas dos anos 1990, como ela própria. Ao final do primeiro ano de faculdade, Mounia e a família foram obrigadas a deixar a Argélia rumo à França. Pois a cineasta colocou sua protagonista em outro lugar. Nedjma se orgulha e quer continuar a viver na Argélia. Tampouco é contra a religião. Sua luta é pela liberdade e contra os abusos cometidos em nome da fé.