Lino de Albergaria*
Especial para o Estado de Minas
Ana Cecília Carvalho, com o romance A memória do perigo, conclui a trilogia em que aborda o tema da inquietude, presente nos volumes anteriores Os mesmos e os outros: o livro dos ex e O foco das coisas & outras histórias, quando registra as impensáveis estranhezas que permeiam as relações interpessoais.
Desta vez, prefere tratar do absurdo que comanda a existência humana, explorando o esgarçamento de uma memória fluida, que, entre água e areia, impossibilita ao narrador compreender ou absorver um acontecimento traumatizante. Ele nunca poderá ter certeza do que realmente viu por ter chegado um breve minuto após a explosão.
A memória e a linguagem são questionadas como possibilidades de se construir um sentido objetivo nesta narrativa em que um suposto Xavier se dirige ao interlocutor Robert de uma forma imprecisa, com as identidades trocando constantemente de lugar. Natália, que se interpõe entre os dois homens, anuncia outra mulher, multiplicada em Denise/Anelise/ Alex, que, por sua vez, traz à cena um rapaz que pode ser Bianchi ou o químico da banca de revistas.
Os dois últimos personagens, apesar da identificação múltipla, têm características que os denunciam: a loura míope com o esmalte sempre descascado e o rapaz com uma cicatriz que pode sangrar quando ele fala.
O enigma subjacente ao texto, pressupondo a ausência ou a incompletude de sentido das coisas, deixa, para uma possível decifração, várias trilhas ao longo dos 19 capítulos. São sutis chaves de leitura, acionadas por referências literárias, musicais, cinematográficas.
Precisos, os títulos têm um forte diálogo com as epígrafes. Beckett e Cortázar podem iluminar o tumulto das palavras ou a fluidez das pessoas verbais. O misterioso Armand Lancestrong, primeiro a ser citado, dá o tom do que virá: as cartas não enviadas, levando à absurdidade pioneira de Melville e seu anti-herói Bartebly, além da menção à fala que sangra do mesmo modo que nos fere o silêncio.
Já na primeira alusão ao incidente detonador da nebulosa história, o narrador percebe no caminhão uma carga de livros, provocando um alerta de perigo. Teme ser tragado pelo excesso de sentido. Lembra, ainda, que o interlocutor, Robert, havia dito para que se precavesse contra o lapso que tudo engolfa. Uma grande máquina explode como uma enxurrada de frases, introduzindo imagens de peixes, cães, gatos, cavalos e o pássaro de um olho só, mais tarde identificado como um grande corvo. Simbólicos, os animais o ofuscam, impedindo a recordação definitiva do perigo que não pôde entender.
O personagem se transfere para um retiro na montanha, depois substituído por uma casa de muitos cômodos vazios, com seus pensamentos trazidos na mala, à espera de um lampejo de sentido, como Vladimir e Estragon aguardavam em vão por Godot.
O primeiro comentário musical dos muitos que vão pontuar o texto evoca o rock do grupo Eagles, Hotel Califórnia, uma armadilha, uma prisão, o lugar que nunca poderá ser abandonado.
Embora ocupando corpos diferentes, pois surgem juntas, Natália e Anelise/Denise são semelhantes na rigidez das posturas e no vestuário. Têm a função de observadoras do comportamento do homem recluso e estariam a serviço de Robert, o contraponto do narrador e destinatário de sua escrita.
Anelise traz até o solitário personagem um rapaz, que, pelo mesmo nariz adunco, se revela o duplo de um certo Bianchi, antigo chefe de nosso confuso herói. Ele duvidosamente assegura à mulher que os animais – gatos, cães, aves – pouco sofreram, apesar da referência à peça de Peter Schaffer, Equus, sobre um jovem que cegava cavalos. Vem ao encontro do leitor o pássaro de um olho só. A falta de uma visão completa reforça as falhas da memória.
Outra epígrafe de Armand Lancestrong afirma que ficamos cegos quando as ilusões em que nos refugiamos explodem, e a teia de sentidos se desfaz.
Entre os presentes enviados por Robert – o outro? –, há um pacote de alfinetes e uma velha revista. Os alfinetes seriam usados pra prender as palavras de um dicionário etimológico, doação do dono da banca de revistas, desaparecida quando explode o caminhão. Da revista dispersa-se também uma manada de palavras.
Quando deixa sua casa, o homem é levado por Natália a um prédio labiríntico, onde na realidade não teria entrado, pois um acidente o traz de volta, ferido junto ao olho esquerdo. Começa a duvidar se tudo aquilo não seria imaginação. Personagens das telas de cinema se intrometem no monólogo dirigido a Robert, movidos por comportamentos estranhos e que desafiam as normas, oriundos de filmes como Perdas e danos e Um estranho no ninho. Também surge Bartebly, criação de Melville, precursor do absurdo de Kafka e Camus.
Reproduzindo a atmosfera do outro conto, trabalhando no departamento de cartas perdidas, sob a orientação de Robert, ele subtrai uma fotografia, na qual levitam as personagens da cena final que não percebeu.
A derradeira trilha sonora posta para tocar vem de uma obra de Sergio Leone, tão destoante do resto da filmografia evocada, mas seu nome é Dopo l' esplosione. Acompanha a invocação de Sísifo, cujo mito Albert Camus explorou como a negação de algum sentido para a existência humana. A liberdade, para o existencialista, só se acha na aceitação do absurdo.
Finalizando sua exploração da inquietude, Ana Cecília, que já havia posto em relevo a metáfora dos desentendimentos irreconciliáveis de nossa época, urde essa teia mutante e instável, como se nela juntasse os cacos de um espelho que, numa imprevisível combinação, desvelam os avessos da aventura humana na intenção de explicar a vida.
* Lino de Albergaria é escritor. Autor, entre outros, de O homem delicado, Um bailarino holandês, Em nome do filho e de vasta obra dedicada ao público infantojuvenil.
A MEMÓRIA DO PERIGO
. De Ana Cecília Carvalho
. Quixote+Do
. 90 páginas
. R$ 39,90