Tanto fizeram e continuam fazendo, que distopia, a exemplo de policial, guerra, romance, já se consolidou como um subgênero literário, com nicho exclusivo em algumas livrarias estrangeiras. Ficção científica e literatura futurista ou de antecipação se tornaram qualificativos demasiado genéricos para fantasias ambientadas em sociedades opressivas ou constantemente assombradas por ameaças autoritárias.
Da obra de Ray Bradbury, por exemplo, só Fahrenheit 451 divide a mesma prateleira de 1984, de George Orwell; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; Nós, de Yevgueni Zamiátin; e O homem do castelo alto, de Philip K. Dick.
Os clássicos distópicos não saem, et pour cause, dos catálogos das editoras, são constantemente retraduzidos e convertidos em filmes e séries de TV. Avidamente consumidos por puro deleite ou mesmo por masoquismo e catarse, sobretudo depois da eleição de Donald Trump, eles ganharam, nos últimos tempos, pelo menos uma dedicada praticante de alto nível: a canadense Margaret Atwood, premiada com o prestigiadíssimo Booker Prize pela continuação de O conto da aia.
Em The testament, Atwood nos devolve, 15 anos depois, à teocracia fundamentalista e militarizada de Gilead, em relato não mais conduzido por Offred, mas por três vozes femininas: a instrutora Lydia e duas jovens que não conheceram o mundo antes da tirania machista. Era intenção da autora não levar O conto da aia adiante, mas foi convencida do contrário pela supressão da liberdade e a assustadora ascendência de religiosos fanáticos em diversas democracias laicas, além de certas dúvidas levantadas por leitores do romance desde sua publicação.
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SUICÍDIO
Boye teve uma vida conturbada, confrontando a família, a crença religiosa e a identidade sexual. Livre do casamento infeliz com um colega de ativismo político de esquerda, assumiu seu lesbianismo, mas a depressão levou-a ao suicídio, em abril de 1941, um ano depois do lançamento de Kallocaína.
A decepção que tivera com a União Soviética em 1938 e o que presenciara nos albores do nazismo, numa estada em Berlim para tratamento psicanalítico contra a depressão, foram os detonadores do livro, como também de 1984, publicado oito anos depois. Não se sabe se Orwell conhecia o romance de Boye. Há pontos em comum entre Leon Kall e Winston Smith, o anti-herói de 1984, assim como entre o Estado Mundial de Kallocaína e o de Admirável mundo novo.
Tiranias são espelhos umas das outras: o Estado é tudo, o indivíduo não é nada, o amor é um sentimento obsoleto e, acima de tudo, perigoso, subversivo. O livre-arbítrio, um luxo inadmissível. O que importa é a ordem, é a harmonia sob tacão de forças armadas e tecnologicamente avançadas a serviço de uma elite difusa.
O slogan do Estado Mundial de Huxley – comunidade, identidade e estabilidade – é engodo demagógico, invalidado pela ausência dos valores básicos da liberdade de escolha e expressão, da fraternidade sincera e da igualdade social. Huxley agendou seu “mundo novo” para circa 2545 (ou 632 anos d.F, isto é, depois de Ford, Henry Ford), mas em 1959 admitiu ter subestimado a rapidez com que os novos recursos de manipulação do comportamento humano avançaram nas duas décadas anteriores.
Huxley inventou o soma, uma espécie de “soro da euforia” que induz as pessoas a um estado de otimismo e bem-estar físico, de inestimável valia para a sustentação de qualquer ditadura. É um consolo constatar que nem o soma nem a kallocaína tenham sido inventados. Talvez porque, a essa altura, desnecessários. (Estadão Conteúdo)
KALLOCAÍNA
. De Karin Boye
. Tradução: Fernanda Sarmatz Akesson
. Carambaia
. 256 páginas
. R$ 86,90
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