O horror da destruição e o drama do luto incompleto. Gêneros cinematográficos que se unem no curta-metragem ficcional Quando a terra treme, de Walter Salles. É ficção, mas poderia ser um documentário. A produção da Videofilmes reconstitui, com a união de atores profissionais com moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, as cicatrizes e pesadelos dos atingidos pela lama que devastou os vilarejos, deixando 19 mortos, um desaparecido e centenas de desabrigados.
“O maior crime ambiental da história do Brasil até aquele momento”, destaca Salles no encerramento do curta-metragem, que será exibido no Canal Brasil, às 21h50 desta terça-feira (5), quatro anos depois do rompimento da barragem da Samarco. Só que, em 25 de janeiro de 2019, veio a tragédia de Brumadinho – e em escala muito mais devastadora.
“Foi como um pesadelo que teimava em nunca acabar. É uma repetição tão absurda que nem os piores roteiros de filmes sobre catástrofes teriam coragem de usar mão dela”, compara o cineasta, que volta ao passado em busca de explicações. “São questões estruturais que nos afligem há séculos. O extrativismo, o desterro, o desamparo, e a impunidade – o mal de todos os males”, opina, em entrevista ao Estado de Minas.
Com roteiro da realizadora Gabriela Amaral Almeida (diretora de longas de horror como A sombra do pai e O animal cordial), o curta-metragem rodado em 2017 é centrado em uma família fraturada depois da passagem da lama: a mãe e o filho sobrevivem. O pai desaparece. E, como no longa-metragem mais conhecido do cineasta, Central do Brasil, acompanhamos – e nos afligimos – com os efeitos da ausência da figura paterna na vida de uma criança.
Em vez do sertão nordestino, contudo, as ruínas ainda enlameadas do que sobrou dos povoados mineiros são o cenário percorrido pela protagonista, Maeve Jinkings. Apesar da referência do título ao filme A terra treme (1948), de Luchino Visconti, o curta de Walter Salles não decalca o neorrealismo italiano. Narra, de forma impressionante, a realidade brasileira. Do som perturbador da catástrofe ao silêncio do desamparo.
Walter Salles também assina uma produção recente baseada em fatos reais: Irmãos Freitas reconstitui a trajetória do pugilista baiano Acelino “Popó” e de seu irmão, Luis Claudio. Produção da Gullane em oito episódios, com exibições semanais no canal Space, a série foi criada por Salles com o baiano Sérgio Machado, que dirige os oito episódios com Aly Muritiba.
“O boxe é, como o futebol, uma das poucas formas de romper as barreiras sociais no Brasil, e há também nessa história um drama humano raro, que fala de busca de pertencimento e de identidade”, acredita o diretor de Terra estrangeira e Diários de motocicleta.
O que o motivou a dirigir Quando a terra treme?
Quando Jia Zhangke me convidou para fazer parte de um filme coletivo sobre o tempo em que estamos vivendo, a tragédia de Mariana me pareceu o reflexo mais revelador daquilo em que o Brasil se transformou. No rompimento da barragem da Samarco há, como diz Ailton Krenak, um exemplo irrefutável da banalização da vida, em que tudo virou mercadoria – a começar pela natureza. Dezenove pessoas mortas, uma desaparecida, 600 quilômetros de um rio que emudeceu, afetando centenas de milhares de pessoas. Ali estão questões estruturais que nos afligem há séculos. O extrativismo, o desterro, o desamparo, e a impunidade – o mal de todos os males.
Quando a terra treme vai do horror ao drama social. Os dois gêneros são particularmente adequados para tentar reproduzir, na ficção, o impacto do que ocorreu com os atingidos pela lama da Samarco?
O curta retoma um título do cinema de Visconti, figura central do neorrealismo italiano. Só que, em Mariana, a tragédia não foi trazida por um abalo sísmico, e sim pelo homem. Hesse dizia que “o homem é o lobo do homem”. É em momentos como esse que essa frase adquire toda a sua significância.
No final do curta você ressalta que a tragédia de Mariana era “o maior crime ambiental da história do Brasil até o momento”. Três anos depois, veio o rompimento da barragem de Brumadinho. O Brasil não aprende com os erros cometidos?
Ao longo das filmagens, ficamos próximos de vários desabrigados de Paracatu de Baixo e de Bento Rodrigues. Ouvimos relatos individuais que nos marcaram profundamente. Acabamos rodando um documentário registrando esses depoimentos, no final da filmagem, intitulado Vozes de Paracatu e Bento. Ali, pessoas que viveram o drama na pele perguntavam: “O que garante que aquilo que aconteceu aqui não vai se repetir?”. Quando veio a tragédia de Brumadinho, foi como um pesadelo que teimava em nunca acabar. É uma repetição tão absurda que nem os piores roteiros de filmes sobre catástrofes teriam coragem de usar mão dela. Cabe a pergunta: é esse o “progresso” que se quer para o país?.
O dia e a noite dos desabrigados em um ginásio de esportes rendem uma sequência particularmente memorável. Parecem exilados e desterrados no próprio país. Como avalia o tratamento recebido pelos atingidos até agora?
Ali estão não atores que haviam vivido a experiência que estávamos filmando. Esse era um momento crucial do filme, o tempo suspenso que se segue à tragédia. Personagens exilados de suas casas, entre mundos: um pouco como os personagens de Still life, de Jia Zhangke. Pedimos que eles revivessem aqueles momentos em tempo real e procuramos captar cenas e expressões com urgência. Filmamos mais de 50 planos por dia, guiados pelos nossos personagens. A inteligência e a sensibilidade de Maeve Jinkings permitiram filmar ficção como se estivéssemos num registro documental.
Como os moradores locais participaram do curta-metragem?
Frente à câmera, também nos norteando no set. Vários desabrigados que foram atores do curta estavam voltando para Paracatu pela primeira vez em mais de um ano. A terra de origem não é apenas um espaço geográfico, mas também afetivo. Participar do filme foi uma forma de reatar esses laços: muitas pessoas estavam se reencontrando depois de um longo período.
Há, no curta, a participação de André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico. O que você destaca na produção dos realizadores mineiros? Qual o trabalho, entre curtas e longas, da produtora que mais o impressionou da produção recente de Minas?
Gosto de várias vertentes do cinema mineiro. Sou fã de Cao Guimarães, um dos realizadores mais geniais do cinema brasileiro, artista de uma sensibilidade incomum. Gosto muito da obra de Helvécio Marins, de Girimunho, codirigido por Clarissa Campolina, e de Querência, seu novo filme. Sou fã do André Novais desde Ela volta na quinta, também gostei muito de Temporada, com Grace Passô. E Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, é um dos melhores filmes sobre a questão da precarização do trabalho no Brasil. Admiro a forma com que o tempo é tratado na maioria desses filmes, assim como gosto da forma como o cinema mineiro traz o homem comum para o centro da narrativa. O excelente O homem das multidões, que Cao realizou com Marcelo Gomes, vai nessa mesma direção.
“Eu vim procurar meu pai”, diz o menino Guto em Quando a terra treme. De imediato, vem à lembrança Josué (Vinicius de Oliveira), em Central do Brasil. O efeito do tempo na ausência da figura paterna é uma das conexões do curta com seus longas anteriores? Por que o tema lhe interessa tanto?
É algo que me vem de uma forma mais intuitiva do que racional. Talvez pelo fato de a ausência do pai ser constitutiva da formação do Brasil, e pela sensação de orfandade que nos perpassa. Confundo até hoje as palavras “pai” e “país”, e isso acaba reverberando ao longo dos trabalhos.
Você mostra o esforço de anônimos, mesmo cercados pela dor e desamparo, para socorrer um animal soterrado na lama. A união coletiva é uma possibilidade de esperança para o país?
Amos Gitai falou recentemente na Mostra de São Paulo que um país não é apenas um governo, mas sim algo muito mais complexo e polifônico, formado por diversas camadas e correntes de pensamento. Em momento tão complexo quanto o que estamos vivendo, é fundamental não ficar a reboque dos fatos e continuar a criar ideias originais e divergentes, que desvendem outras possibilidades de vida. E penso que as mais fecundas, no cinema e na vida, são aquelas que surgem de forma coletiva. Já no seu nascimento, o cinema é o resultado de um trabalho realizado a quatro mãos – as dos irmãos Lumière.
Quando a terra treme
Curta-metragem de Walter Salles
Videofilmes, 26 minutos
Exibição nesta terça (5), às 21h50, no Canal Brasil
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