Em entrevista ao Estado de Minas, o cineasta Walter Salles comenta as reações ao seu filme mais premiado, Central do Brasil (1998), avalia as mudanças ocorridas no Nordeste nesse período e fala de seu interesse pelo boxe, que o levou a criar a série Irmãos Freitas.
A exibição de Central do Brasil em horário nobre na Rede Globo, no mês passado, rendeu milhares de comentários nas redes sociais. Para muitos, foi a primeira oportunidade de assistir ao seu longa-metragem mais premiado. Acompanhou as reações? Qual o significado de Central, lançado em 1998, para o Brasil de 2019?
Perceber o filme ecoar 20 anos depois de ser realizado foi um presente para toda a família que fez Central do Brasil. Parte dessa reação talvez se deva ao fato de que o filme contrasta frontalmente com o “odiai-vos uns aos outros” que virou a narrativa oficial no país. Central do Brasil parte em busca de um pai, mas também de um país possível, em que possamos nos ver refletidos, com nossos desejos, mas também nossas diferenças pessoais, políticas e religiosas. Há um desejo inclusivo a nortear o filme, o que definitivamente não caracteriza os tempos em que estamos vivendo hoje.
Em uma das entrevistas para divulgação de Bacurau, Kleber Mendonça Filho declarou: “Vi Central do Brasil durante a montagem de Bacurau, e o sertão que Walter (Salles) filmou em 1997 não é mais o sertão que existe hoje. Ainda era o sertão dos anos 1980, 1970, 1960. Tinha traços muito claros dessas décadas. Também era um sertão onde a internet ainda não tinha tido um impacto. Esses 20 anos fazem muita diferença. Hoje, o sertão faz parte do mundo de uma maneira que não fazia antes. Ele era muito mais isolado culturalmente e socialmente”. Você concorda com a análise do cineasta pernambucano?
Sim, concordo. Central do Brasil descrevia um Brasil pré-digital, mas também exprimia um desejo de reconstrução, o de uma sociedade mais justa depois dos anos sombrios da ditadura e do desgoverno Collor. A parcela de pessoas que vivia abaixo da linha de pobreza diminuía pela primeira vez no final dos anos 1990, o que se acentuou de 2000 a 2014. Havia a percepção de que uma social-democracia seria possível no país. Foi essa percepção que se inviabilizou com o impeachment de Dilma, em 2016. Hoje, os ataques constantes à democracia criam um quadro de instabilidade institucional que não víamos desde os anos de chumbo. Bacurau antecipa brilhantemente esse estado: filme de resistência, um reflexo potente da realidade distópica que estamos vivendo.
O que achou da participação de Fernanda Montenegro em A vida invisível, de Karim Aïnouz, representante brasileiro na disputa por um Oscar de produção em língua estrangeira? E das homenagens que ela recebeu pelo país ao completar 90 anos?
Fiquei muito comovido por A vida invisível, que redefine os códigos do melodrama no cinema brasileiro. Fernanda está luminosa no filme, como sempre. E, como em Central do Brasil, sua atuação potencializa o filme de Karim. Quanto às cartas, gosto desses rios submersos que unem às vezes os filmes. A comemoração dos 90 anos de Fernanda foi daqueles momentos em que nos lembramos do privilégio que é ser brasileiro. E do presente que é viver no mesmo tempo que ela.
Você é um dos criadores da série Irmãos Freitas. O que o atraiu na história real de Arcelino “Popó” e Luiz Cláudio? Por que contar essa história em episódios, e não em longa-metragem?
Sempre fui fascinado pelo universo do boxe, que reflete o da tragédia grega: no ringue, há um protagonista e um antagonista em luta pela sobrevivência e pelo reconhecimento, e no entorno há o coro grego, o público. É um universo essencialmente fílmico. O boxe é, como o futebol, uma das poucas formas de romper as barreiras sociais no Brasil, e há também nessa história um drama humano raro, que fala de busca de pertencimento e de identidade. Com Sérgio Machado, tentamos primeiro desenvolver o roteiro de um longa, dentro do núcleo de desenvolvimento da produtora Videofilmes. Pouco a pouco, ficou claro que a história de Popó e Luiz Claudio não caberia em apenas duas horas, precisava de mais tempo para se desenvolver plenamente. É daí que surge a série Irmãos Freitas, que Sergio Machado e Aly Muritiba dirigiram.