Maeve Jinkings*
Especial para o Estado de Minas
Em abril de 2017, estive na cidade de Mariana e no subdistrito de Paracatu de Baixo com Walter Salles e uma equipe de cinema, a fim de realizar um filme sobre o rompimento da barragem da Samarco.
Junto às vítimas, buscávamos entender como se sentiram no dia do desastre e como permaneciam lidando com suas memórias. Logo após a tragédia, imagens da destruição foram exaustivamente replicadas, comovendo o país e o mundo. No entanto, passado o primeiro momento de comoção, os atingidos sentiam-se falando sozinhos.
Diante da imaterialidade de comunidades centenárias levadas pelos rejeitos tóxicos, falar era uma forma de resgatar suas identidades e fazer justiça. Hoje penso como a sonoridade da tragédia me deu a dimensão do absurdo: do estrondo inicial à luta solitária das vozes atingidas. A memória do som da avalanche e suas narrativas orais foram a tradução mais humana das ruínas expostas.
Aprendi que o som é mal-educado, desconhece as barreiras físicas e a ideia de propriedade. Chega antes da matéria, se propaga através da vibração e faz com que não seja óbvia ou visualmente explícita a sua influência sobre nós. Percebemos o som, mas não conseguimos vê-lo.
Que dizer do estrondo de um enorme mar de lama? Relatos falam de um som assustador derrubando árvore, levando casa, carro, um som de filme de terror. O ruído encontrou pessoas na mesa de almoço ou na própria cama, de onde tiveram que sair correndo. Antes de ver, puderam escutar. Perderam tudo. O vale virou silêncio.
Após nossas filmagens de 2015, um novo rompimento se deu em Brumadinho, em 2019, soterrando falas e superando o número de mortos: o maior acidente trabalhista da história do país. Impressiona-me a repetição dos depoimentos na nova tragédia, como se as denúncias anteriores fossem inaudíveis aos ouvidos daqueles com poder de evitar outro rompimento.
A narrativa do absurdo parece ter ficado presa debaixo de lama. Aquilo que não foi dito matou pessoas: “A sirene de alerta nunca tocou, nem sei qual é o som dela”, relatam sobreviventes.
Passado o primeiro momento da tragédia, o som permanece a assombrar. Como se ultrapassasse não apenas barreiras físicas, mas também temporais. Entrevistando uma vítima de Mariana, seu olhar distante e assustado me diz que acorda de madrugada escutando a avalanche. O coração acelera, acha que vai morrer: jamais está a salvo. Aquilo que matou seus parentes e amigos tampouco era visível, no entanto estava vibrando escondido no interior de um campo tóxico aparentemente controlado. Esse descolamento da imagem e do que atribuímos a ela traduz o próprio pesadelo da experiência.
Depoimentos revelam que muitas pessoas que faleceram ficaram paralisadas, sem reação, hipnotizadas pelo que estavam vendo sem conseguir reagir. Hipnotizadas pela imagem. “Não posso mais olhar para uma montanha, senão vejo a onda vindo outra vez”, desabafa uma das vítimas atingidas pelos rejeitos.
Os absurdos do Brasil de 2019 não cessam de se acumular sobre nós, e sempre me vem à mente a dor dos sobreviventes, mas também o próprio sentido de soterramento no qual vejo o país. Convivendo com vítimas das barragens, escutei muito a palavra “impunidade”, mas também o sugestivo nome de seu jornal comunitário: A Sirene.