Empilhar é o ato de amontoar ou ajuntar coisas. A pilha, por si só, é algo desvalorizado. Durante o processo de pesquisa e produção de seu livro mais recente, que tem como eixo central o feminicídio, a escritora paulista Patrícia Melo, uma das autoras mais premiadas da literatura contemporânea brasileira, ficou impressionada em como praticamente todas as histórias eram similares.
“Parece que a gente está lendo o mesmo caso o tempo todo. Começa em casa e sempre está ligado a alguém em quem você confia ou confiou em determinado momento. A relação começa a ficar violenta, inicialmente verbalmente e, depois, fisicamente, até que, de repente, a mulher é morta. E é uma história atrás da outra, um volume tão grande de vítimas. Por isso veio a imagem da pilha de cadáveres na minha cabeça. A matança é grande, parece uma epidemia”, afirma.
Daí nasceu o título Mulheres empilhadas (Editora Leya), que Patrícia Melo lança nesta semana no Brasil (a escritora vive na Suíça, ao lado do marido, o maestro John Neschling). Nesta quinta-feira (7), ela autografa o livro e comenta o tema com o público no projeto Sempre um Papo, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte.
Envolvente e bem-escrito, o livro é o primeiro da autora com protagonismo feminino. Ela conta que achava importante falar de um assunto tão duro e assustador, mas também urgente. “É algo que temos que falar. No Brasil, matam-se 11 mulheres por dia. São números que assombram, que nos incomodam, nos intimidam. É uma estatística inaceitável. Dentro desta sociedade violenta em que vivemos, o feminicídio é a ponta do iceberg. Mas, quanto mais a gente debater isso com profundidade, mais vamos tentar encontrar um mecanismo para erradicá-lo”, diz.
Por abordar uma triste realidade, Patrícia quis mesclar a trama com um pouco de fábula. Mulheres empilhadas é uma ficção que pincela casos reais. No enredo, uma jovem advogada paulistana, tentando fazer as pazes com seu próprio passado, larga tudo e vai ao Acre acompanhar um mutirão de julgamentos de casos de mulheres assassinadas, na maioria das vezes, por homens conhecidos seus – pais, tios, avôs, maridos, namorados, ex-maridos. Enquanto vê passar diante dos seus olhos os mais diversos casos de violência contra a mulher, a protagonista descobre um país onde a impunidade se impõe quase como uma lei.
FLORESTA
A opção pelo Acre como cenário da trama se deve não só ao fato de ser o estado com o maior índice de feminicídios do país, mas também por estar imerso na floresta. “Li uma matéria de jornal sobre esses mutirões de feminicídio não resolvidos e vi que o Acre estava tendo o melhor desempenho, apesar de ter esses números alarmantes. E, como eu ainda desejava trazer algo mais fantasioso, onírico, para dar uma quebrada na dureza da realidade, queria que a história se passasse na floresta”, explica.
A obra se divide em três partes. O índice numérico (de 1 a 11) apresenta casos reais retirados das páginas dos jornais; o índice alfabético (de A a Z) traz a trama central com a advogada e seus dilemas e descobertas, enquanto o índice de alfabeto grego (de alfa a etá) se dedica aos encontros da protagonista com as icamiabas, tribo de guerreiras amazônicas. Junto delas, acaba formando uma sociedade de mulheres que perseguem, julgam e matam os criminosos que escapam da Justiça na vida real.
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Dicionário explica a república brasileira desde a proclamação até hojePor que ler 'A mulher e os espelhos', clássico centenário de João do RioMilton Hatoum: 'Literatura é um antídoto à miséria do mundo'A advogada, aliás, é a única do livro que não tem nome, uma forma escolhida pela autora para que a personagem represente todas as mulheres. “Você olha o perfil das vítimas e tem de tudo – negras, brancas, magras, gordas, ricas, pobres. O feminicídio é democrático. E também quis que o leitor se colocasse no lugar da protagonista. Por isso a ideia de não nominá-la”, pontua.
Patrícia Melo não chegou a ir pessoalmente ao Acre. Sua pesquisa foi toda feita pela internet, em livros e entrevistas com pessoas ligadas ao tema. Mas ela contou com uma colaboração especial, da amiga e jornalista Emily Sasson Cohen, que foi seus olhos e seus ouvidos na floresta. Quando Emily retornou do Acre, a autora já estava redigindo os capítulos finais. “Pesquisei muito, inclusive imagens de rua, da floresta, da cidade de Cruzeiro do Sul, onde se passa a história, para poder descrever aquele lugar. A grande parte do Acre que está ali nas páginas é sob o meu ponto de vista. Isso é literatura. Transportar e transcender o leitor para um outro local”, afirma.
Mulheres empilhadas
Patrícia Melo
LeYa Brasil (240 págs.)
R$ 39,90
A autora participa do Sempre um Papo nesta quinta (7), às 19h30, na Sala Juvenal Dias do Palácio das Artes – Avenida Afonso Pena 1.537, Centro.
(31) 3261-1501.
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