"No título da peça já existe a convocação ao público para estar ativo nessa experiência, mas isso não significa que o espectador tenha que fazer o papel do ator, e sim ter a consciência de sua função como público"
Márcio Abreu,diretor de Por que não vivemos?
No jargão teatral, a quarta parede é uma parede imaginária situada na frente do palco, através da qual a plateia assiste passiva à ação do mundo encenado. Mas nem sempre esse muro invisível é intransponível. Afinal, o teatro nada mais é do que uma experiência de envolvimento e interação entre seres humanos.
“E é uma arte pública, presencial, viva, nada isolada. Ele é feito para e com as pessoas e só existe por conta disso. Não é algo meramente demonstrativo que exclui o outro. Muito pelo contrário. O sentido maior do teatro é colocar as pessoas umas diante das outras, criando perspectivas de linguagem para perceberem outras dimensões”, afirma Márcio Abreu, fundador e diretor da Companhia Brasileira de Teatro, que apresenta o espetáculo Por que não vivemos? até o próximo dia 18 no CCBB-BH.
Inspirada no texto Platonov, o primeiro de Anton Tchekhov (1860-1904), a peça é ambientada numa propriedade rural de uma jovem viúva, e a ação se dá durante uma festa de réveillon, na qual está presente Platonov, um aristocrata falido. Bem articulado, brilhante e sedutor, admirado e invejado, elei acaba reencontrando ali Sofia, um amor de juventude. O elenco conta com Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini e Rodrigo dos Santos.
Em vários momentos, Por que não vivemos? Convida os espectadores a uma participação mais intensa. A própria configuração do teatro (com duas plateias bifrontais) possibilita essa proximidade. Uma parte do público se encontra onde seria originalmente o palco e a outra, no que é originalmente a plateia. “A gente ocupa praticamente todo o espaço. O hall externo, a parte de trás do palco que dá acesso aos camarins, a plateia. Tem cenas espalhadas entre o público. Vejo o teatro como uma forma de convivência e isso é algo que está bem presente no meu trabalho”, afirma o diretor.
Além de os atores interagirem com a plateia, o público participa da festa. Até cerveja é distribuída. “No título da peça já existe essa convocação ao público para estar ativo nessa experiência, mas isso não significa que o espectador tenha que fazer o papel do ator, e sim ter a consciência de sua função como público”, pontua.
O diretor conta que, nem sempre, quando está produzindo algum trabalho, pensa diretamente em “interagir” e que a questão primordial é gerar um acontecimento que não exclua as pessoas. “Acho que existe um conceito falso e propagado de que peça interativa expõe as pessoas. Não é isso o que eu faço. Meu trabalho tem a ver com uma estrutura dramatúrgica e cênica que envolva o espectador numa experiência na qual ele se sinta incluído e um ser participante daquela prática, que é coletiva”, afirma.
Ele acrescenta que sua ideia de interação entre público e ator é um elemento de construção da experiência teatral onde não pode haver constrangimentos. “Isso não é estilo, tendência ou uma maneira de pensar. Acho que todo tipo de 'interação' é bem-vinda, se tiver um propósito. Vale tudo nessa relação, mas tem que ter uma ética envolvida.”
''Deixamos todas muito à vontade. Ninguém está ali obrigada. Mas todo mundo entende que é necessário estar ali para poder contar aquela história. Até mesmo quem está nas cadeiras acaba participando desses jogos teatrais que propomos. A participação do público é fundamental em todo o processo, e as pessoas entendem e querem fazer parte"
Talita Braga,atriz, dramaturga e codiretora de Banho de sol
PALCO
Outra peça que propõe um envolvimento do público é Antes que a definitiva noite se espalhe em Latino América, dirigida por Felipe Hirsch e que esteve em cartaz há duas semanas em Belo Horizonte. O espetáculo é inspirado em textos de autores brasileiros, argentinos e chilenos e tem como tema os tempos sombrios em que vivemos ao redor do planeta. Em um determinado momento, o ator Guilherme Weber convida uma parte da plateia para subir ao palco e ouvir uma das seis histórias que norteiam a montagem.
Uma das montagens teatrais mais aclamadas neste ano em Belo Horizonte, tendo sido vista por aproximadamente 10 mil espectadores, segundo a produção, Banho de sol só seria possível com a participação ativa dos espectadores. Ao longo de um ano, quatro atrizes e professoras de teatro (Talita Braga, Gláucia Vandeveld, Kelly Crifer e Mariana Maioline, que fazem parte da Zula Cia) ocuparam um complexo penitenciário feminino durante as duas horas do banho de sol. Daí nasceu a peça.
Talita, que é responsável pela dramaturgia e dirige a produção ao lado de Mariana, conta que o eixo principal da encenação foi pensado de forma a não apenas contar, mas também envolver o público na experiência que elas tiveram no complexo penitenciário. Durante praticamente toda a peça, 14 espectadoras são convidadas a fazer parte dos jogos que ocorrem no palco. “A plateia sai do seu lugar e se coloca naquela situação. Ela nos ajuda a contar a história, mas, em nenhum momento, nem as espectadoras nem nós representamos as presas. Não é isso que acontece ali. É uma coisa de sororidade, de empatia”, destaca.
A atriz conta que nunca ocorreu a situação de alguém se recusar a participar. No entanto, pela própria força e intensidade do roteiro, há casos de gente que se emociona em cena. “E nós fazemos esse acolhimento, esse cuidado. Deixamos todas muito à vontade. Ninguém está ali obrigada. Mas todo mundo entende que é necessário estar ali para poder contar aquela história. Até mesmo quem está nas cadeiras acaba participando desses jogos teatrais que propomos. A participação do público é fundamental em todo o processo, e as pessoas entendem e querem fazer parte”, observa.
''Sempre tento ser muito cauteloso para não ferir o outro. Cena de plateia, quando dá certo, é muito bom, mas, quando não dá, é um constrangimento enorme. Por isso bato na tecla de que o ator que faz cena de plateia tem que ser muito carismático"
Carlos Nunes,humorista e diretor
ENVOLVIMENTO
Um dos mais conhecidos nomes do teatro mineiro, o ator, humorista e diretor Carlos Nunes admite que, ao longo dos seus 39 anos de carreira, praticamente aboliu a quarta parede. É quase impossível assistir a um de seus espetáculos e não vê-lo superenvolvido com a plateia e vice-versa. “Sempre gostei de estar perto do público e interagir com ele. Dependendo da reação, muda até a minha encenação. Acho que a comédia pede muito esse envolvimento, essa interação. Mas acho que tudo tem que ter uma finalidade. Nada pode ser gratuito”, opina.
Nunes diz que, para fazer uma cena em que abarque a plateia, é necessário que o ator seja carismático e tenha empatia com o público. E, claro, sempre respeitando o espectador e se colocando no lugar dele, para evitar situações embaraçosas ou algum mal-estar. No entanto, ele já enfrentou alguns apertos. Em uma apresentação fechada para um grupo de médicos de seu maior sucesso, Como sobreviver em festas e recepções com buffet escasso, um espectador não só se recusou a participar de uma determinada cena, como ainda o ofendeu com um gesto obsceno.
“No final, ele me pediu desculpas, disse que foi infeliz naquele momento e acabou assistindo a todos os meus espetáculos posteriormente. Sempre tento ser muito cauteloso para não ferir o outro. Cena de plateia, quando dá certo, é muito bom, mas, quando não dá, é um constrangimento enorme. Por isso bato na tecla de que o ator que faz cena de plateia tem que ser muito carismático.”
Em outra ocasião e com a mesma peça, Carlos Nunes começa a interpretar um bêbado. De repente, uma mulher se levantou e começou a criticá-lo: “Você não precisa fazer um bêbado para fazer graça. Tenho um irmão que morreu de cirrose. Você sabe o que sofre um bêbado?”, gritava. O humorista ficou sem reação. Do outro lado da plateia, uma moça tomou as dores de Carlos Nunes e disse a ele algumas palavras de consolo. Foi a deixa para o ator quebrar o clima e pedi-la em casamento, numa cena que estava no roteiro.
“Só que ela levou isso muito a sério. Ela me ajudou a sair daquela situação embaraçosa, mas me arrumou um outro problema. A moça realmente achou que eu a estava pedindo em casamento, levou os pais ao teatro para me conhecer e tudo. Foi difícil me desvencilhar, resolver aquele mal-entendido, mas, no fim das contas, deu certo”, recorda.
O humorista diz que, em muitos casos, acontece de o próprio público cobrá-lo alguma interação. “Sinto essa necessidade de contracenar com as pessoas, de ir até a plateia, de estar junto dela. Acho que as pessoas sentem essa necessidade também. Quando me chamam para descer do palco, considero isso um presente. Não faço teatro para mim, não gosto de ficar preso lá no palco. Meu teatro é para e com a plateia”, afirma.