Em novembro de 2015, quando sua mãe, Iracema Lima Aïnouz, morreu aos 85 anos, o cineasta cearense Karim Aïnouz, de 53, escreveu uma carta “muito pessoal” para ser entregue às pessoas que compareceram ao velório. Tentou contar o que ela havia vivido.
Hoje nome do auditório do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Federal do Ceará, Iracema graduou-se em agronomia, tornou-se a primeira mulher pesquisadora daquela instituição, estudou nos Estados Unidos, trabalhou na França. No Brasil, criou sozinha seu único filho, fruto da relação com um argelino que sumiu antes de o bebê nascer.
Exata uma semana depois da morte da mãe, Karim leu A vida invisível de Eurídice Gusmão. Na época, o romance de estreia da carioca Martha Batalha não havia sido publicado no Brasil – isso ocorreu somente em abril de 2016, pela Companhia das Letras –, mas já era vendido para vários países. Karim admite: sentiu inveja do poder que a história trazia, pois reconheceu nas personagens fictícias não apenas sua mãe, Iracema, como suas tias e as amigas delas.
“Todo mundo tem algum ponto em comum com a história, pois ela fala sobre a constituição da família brasileira”, afirma o cineasta. Karim conversou com o Estado de Minas de um carro em Los Angeles – vai permanecer nos Estados Unidos mais duas semanas. Cineasta experiente – A vida invisível, que estreia no Brasil na quinta-feira (21), é seu sétimo longa-metragem –, admite estar em “outro mundo”, “aprendendo” a lidar com ele.
Desde maio, sua vida virou do avesso. Naquele mês, quando chegou ao Festival de Cannes para exibir o filme na mostra Um certo olhar, o diretor via o evento francês como a grande vitrine para uma obra autoral. “Cannes é ótimo berçário para uma criança, ao lado de Berlim e Veneza”, disse na época, referindo-se aos mais prestigiosos festivais europeus onde exibira seus trabalhos.
Só que veio o principal prêmio da mostra Um certo olhar (feito até então inédito para o cinema brasileiro). No final de agosto, o longa de Karim foi escolhido, com diferença de um voto para o incensado Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (que também fez première em Cannes e dali saiu premiado), como o representante brasileiro para tentar uma vaga no Oscar 2020. A concorrida categoria melhor filme internacional tem candidatos de 93 países, número recorde de inscritos.
AMAZON
Do berçário, Karim teve que pular para a universidade. Produzido pela RT Features, de Rodrigo Teixeira, hoje o brasileiro mais influente na Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood, A vida invisível foi vendido para mais de 30 países. Nos EUA, o longa estreia em 20 de dezembro, com distribuição pela gigante Amazon. Já estreou na Itália; chega em novembro à Espanha; em dezembro à Holanda, Bélgica, Luxemburgo, França; e em janeiro à Grécia.
Em meio a tantas datas, uma poderá fazer ainda mais a diferença: 16 de dezembro. Neste dia, a Academia de Hollywood vai anunciar a chamada shortlist com os 10 filmes internacionais (dos 93 inscritos). Dali eles passarão por novo funil – apenas cinco serão indicados ao Oscar, em 13 de janeiro, como candidatos na dita categoria. A cerimônia está marcada para 9 de fevereiro.
“Se a gente entrar na shortlist, tudo vai se intensificar”, admite Karim, que, por ora, participa sozinho (sem elenco) da pré-campanha do Oscar. “É um outro ecossistema. Como o prêmio é muito ligado à indústria americana, o ritmo é muito diferente daquele dos festivais. É realmente entrar na rotina de mostrar filmes, fazer debates, entender onde estão os votantes (da Academia). Estou adorando a aventura.”
Não há como Karim falar de A vida invisível sem falar de Iracema e de suas contemporâneas. “Não tem como um filme meu não ter algo de autobiográfico, não sei muito separar. Mas adoto sempre o cuidado de não escrever sobre mim mesmo. Cinema é trabalho artístico, não é terapia”, admite. “Iracema é a Guida do filme?”, não dá para não perguntar. “Ela é muito parecida com minha mãe, foi por causa dela que comecei a fazer o filme, pois me apaixonei pela personagem. Mas ao longo do processo fui descobrindo que todas as nossas mães têm algo de Guida e Eurídice”, comenta.
SEPARAÇÃO
A vida invisível acompanha as irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte), filhas de um casal de imigrantes portugueses que passam a juventude no Rio de Janeiro dos anos 1950. Muito unidas, mas bem diferentes, elas acabam separadas. Guida, a mais velha, foge de casa e volta grávida, o que a faz ser expulsa pelo pai. Já Eurídice, que sonha se tornar pianista, cumpre o papel de praxe: como dona de casa, vive um casamento sem amor. A separação forçada determina a trajetória dessas duas mulheres. A narrativa vai de 1950 e 1958 – os momentos finais ocorrem em 2018.
Livro e filme são bem diferentes, inclusive o final, com caminhos opostos. “O que o filme tem em comum com o romance são os personagens e seus dilemas. Mulheres que têm o sorriso 'afogado'. E a Martha foi maravilhosa em construir uma galeria de personagens que acabam se tornando um grande mosaico daquela geração”, elogia Karim.
Geração de mulheres marcadas pelo machismo. “O pai, ao separar as meninas, cometeu um ato de crueldade. As consequências do machismo são muito graves, pois ele destrói a vida de muita gente. A minha mãe fez a vida dela, mas às custas de uma dor muito grande depois de ser largada pelo meu pai. Uma dor que ela não dividia comigo”, revela o cineasta.
O Rio de Janeiro de A vida invisível é uma cidade partida. Rodado em São Cristóvão, Santa Teresa, Estácio de Sá, Centro e Praia Vermelha, o filme busca, por meio das locações, apresentar o “mapa de classes” que não se encontram. “Acho importante que a trama mostre essa separação das zonas, uma das coisas mais fortes na cidade”, comenta o diretor.
Além das duas protagonistas, atrizes jovens e estreantes em cinema, Karim contou com uma participação de luxo. Fernanda Montenegro – “se minha mãe estivesse viva, teria a mesma idade dela” – surge nos momentos finais. Participação essencial, que fecha a narrativa (com algumas lágrimas nos olhos, para aqueles que não se furtam a embarcar de cabeça num bom melodrama).
Karim trabalhou no roteiro durante dois anos. Quando chegou à cena final, pensou: “Este filme é sobre pessoas que passaram por uma guerra e há as veteranas, que estão vivas. É importante que fosse a Fernanda, pois, além do talento, ela tem uma dignidade imensa”, conta.
A atriz foi o primeiro nome que veio à cabeça do cineasta. Karim pensou que ela não aceitaria, “já que o papel é bem pequeno”. Agora, com a possibilidade de o filme ir para o Oscar, a inclusão de Fernanda Montenegro, indicada na categoria melhor atriz por Central do Brasil (1998), virou um trunfo de A vida invisível.
O PAI
Karim Aïnouz teve de parar tudo o que estava fazendo para se dedicar à campanha do Oscar e ao lançamento de A vida invisível. Com isso, interrompeu a montagem de Argelino
por acidente, seu próximo longa. “O filme é realmente autobiográfico, como foi o meu primeiro (o curta Seams, de 1993, sobre sua avó, mulher que criou sozinha as duas filhas).” Desta vez, ele vai atrás de suas raízes. “Procuro o país onde meu pai nasceu. Ao tentar entender de onde ele vem, quero entender que país é este que se libertou do colonialismo”, comenta. O pai do cineasta, ainda vivo, não está no documentário.“Ele está no filme como uma ausência”, revela Karim.
ESTREIA NA QUINTA
Ao longo este mês, A vida invisível vem sendo exibido em pré-estreias nos fins de semana. Em BH, as últimas sessões antes da estreia oficial, na quinta-feira (21), ocorrerão neste domingo (17), às 20h50, no Pátio 2, e às 21h30, no Belas Artes 1. O longa já foi assistido por 11 mil espectadores no Brasil.