O tema dos refugiados é muito presente. Minha fundação trabalha com migrantes na fronteira dos Estados Unidos com o México, onde há uma situação terrível, com milhares vivendo em condições desumanas
O médico Víctor Dalmau, protagonista de Longa pétala de mar, de Isabel Allende, foi inspirado no engenheiro e jornalista Víctor Pey, um dos espanhóis que saíram de seu país para fugir da Guerra Civil Espanhola rumo ao Chile. Pey, escolhido por Pablo Neruda para embarcar no Winnipeg rumo à América do Sul, acabou se tornando amigo do poeta e diplomata e, posteriormente, de Salvador Allende e de toda sua família. Foi Pey quem contou toda a história da travessia a Isabel, sobrinha do presidente deposto.
"Fui vê-lo no dia seguinte em que havia se instalado no consulado", contou Víctor Pey, ao relembrar o primeiro encontro com Neruda na França. "Ele tinha um secretário, Darío Carmona, que perguntou meu nome, minha profissão e quem formava o meu grupo familiar. Neruda tomava notas em um caderno. Me pediu um endereço em Paris para poder ser avisado caso fôssemos escolhidos para integrar o grupo de espanhóis que viajariam ao Chile a bordo do Winnipeg. Tudo transcorreu em poucos minutos. Saí acreditando que havia sido um esforço em vão, pela distância humana, pela frieza com que Neruda me havia falado. Mas, em poucos dias, me chegou um telegrama urgente dizendo que a minha família e eu deveríamos embarcar no Winnipeg".
A história de Víctor Pey serve de base para todo o romance, lançado neste mês no Brasil. Assim como o protagonista do livro, ele deixou a Espanha fugindo do franquismo e, anos mais tarde, teve também que sair do Chile por causa do golpe militar que derrubou um governo de esquerda que havia sido eleito. Pey morreu em outubro do ano passado, aos 103 anos, seis dias antes de a escritora lhe enviar o manuscrito do novo romance, dedicado a ele.
Numa antiga entrevista, Neruda declarou: "Que a crítica apague toda a minha poesia, se achar por bem. Mas este poema, que hoje recordo, ninguém poderá apagar." O "poema" citado por ele não era uma de suas tantas obras literárias, mas, sim, essa façanha humanitária.
Há exatos 80 anos, mais de 2 mil espanhóis desembarcaram em Valparaíso para escapar da Guerra Civil Espanhola que dividiu o país entre 1936 e 1939. Os refugiados fizeram a travessia com a ajuda do governo chileno e, em particular, de Neruda. Como diplomata, o poeta foi o responsável por viabilizar a complexa missão, realizada já com a Segunda Guerra Mundial deflagrada.
Com o fim da guerra civil e a ascensão do franquismo, milhares de republicanos estavam vivendo em campos de refugiados na França em condições precárias. O presidente do Chile à época, Pedro Aguirre Cerda, nomeou Neruda cônsul especial para a imigração espanhola com sede na França.
Neruda, que já tinha sido cônsul em Barcelona e Madri, antes de chegar à França passou por Buenos Aires, Rosário e Montevidéu, onde pediu ajuda financeira de organismos de solidariedade argentinos e uruguaios.
DE CARGA A GENTE
O barco escolhido foi o Winnipeg, antigo cargueiro que não transportava mais do que 100 passageiros bem acomodados. Com algumas alterações, a embarcação ampliou sua capacidade para levar mais de 2 mil pessoas. "Desde o começo eu gostei da palavra Winnipeg", escreveu Neruda em setembro de 1969, ao comemorar os 30 anos da travessia. "As palavras têm asas ou não as têm. A palavra Winnipeg é alada. A vi voar pela primeira vez em um porto perto de Bordeaux. Era um charmoso barco velho, com essa dignidade que os sete mares dão ao longo do tempo. É certo que aquele barco nunca tinha levado mais de 70 ou 80 pessoas a bordo. De resto, foi cacau, sacos de café e de arroz, minerais. Agora, estava destinado a um carregamento mais importante: a esperança."
Foi o próprio Neruda quem selecionou os passageiros. A recomendação era que levasse trabalhadores, mas o poeta resolveu incluir também na lista intelectuais e artistas. Um deles foi o engenheiro e jornalista Víctor Pey, que contou toda a história da travessia a Isabel Allende.
Personagens de carne e osso
Responsável por uma fundação que trabalha com migrantes na fronteira dos Estados Unidos com o México, Isabel Allende bem sintetiza o sentimento daqueles que enfrentam esse tipo de drama: “É gente desesperada”. Ela conta como a história dos que fizeram a travessia da Espanha para o Chile a inspirou a escrever Longa pétala de mar. “Conheci alguns dos passageiros do Winnipeg e vários de seus descendentes. Víctor Pey era meu amigo e me contou a epopeia”.
Como a senhora vê a atual situação política do Chile, com os recentes protestos e a dura resposta do governo? Para muitos analistas políticos, os confrontos só são comparáveis aos da época da ditadura militar.
Os protestos começaram sem motivação política ou ideológica, sem líderes. A população, em massa, está protestando pelo alto custo de vida, os salários miseráveis, a privatização dos serviços básicos, como água, transporte, luz, gás. Sobretudo pela vergonhosa desigualdade econômica e de oportunidades. Um por cento da população tem 25% da riqueza, enquanto 40% dos chilenos não podem sobreviver com seus salários e vivem de crédito. O Chile aparece nas estatísticas como um país próspero, como o de maior estabilidade política, social e econômica da América Latina. Mas os números não mostram a desigualdade. A revolta foi uma surpresa para a classe política, o governo em particular, e as elites privilegiadas. O governo tratou de chamar a atenção para o vandalismo, que ocorreu em grande escala, mas, em geral, as manifestações foram pacíficas. Entre outras demandas, o povo pede um plebiscito, mudança na Constituição imposta por (Augusto) Pinochet em 1980 que continua em vigor, reajustes reais de salários, especialmente das aposentadorias, controle de preços de medicamentos e de serviços básicos.
A senhora já conhecia bem a história do Winnipeg? Por que decidiu resgatá-la neste momento?
Para mim, o tema dos refugiados é muito presente. Minha fundação trabalha com migrantes na fronteira dos Estados Unidos com o México, onde há uma situação terrível, com milhares de pessoas vivendo em condições desumanas, esperando conseguir asilo. É gente desesperada, que foge de países da América Central, especialmente Guatemala, Honduras e El Salvador, países onde impera a lei de gangues de bandidos e narcotraficantes.
Muitos personagens do livro, como o médico Víctor, existiram de fato e foram para o Chile a bordo do Winnipeg. A senhora conheceu alguns deles?
Conheci alguns dos passageiros do Winnipeg e vários de seus descendentes. Víctor Pey era meu amigo e me contou a epopeia do Winnipeg. Ele também conheceu Pablo Neruda, que teve a ideia de levar os refugiados ao Chile, conseguiu que o governo chileno os aceitasse, comprou o Winnipeg, o preparou para a longa viagem e selecionou os passageiros. Sem ele, nada disso teria sido possível.
Até que ponto os personagens do livro foram influenciados pelas pessoas reais, que viajaram no Winnipeg?
Víctor Pey inspirou o personagem de Víctor Dalmau. Também existiu uma pianista como Rosa Bruguera.
A senhora vive atualmente nos Estados Unidos e já viveu como imigrante também em outros países. Como é a sua experiência pessoal como imigrante?
Sou uma imigrante privilegiada. Primeiro, fui refugiada na Venezuela, um país que, naquela época, era rico e generoso, onde fui muito bem recebida e onde eduquei meus filhos. Lá vivem ainda meu irmão, vários sobrinhos e sobrinhas e alguns amigos muito queridos. Depois, fui imigrante nos Estados Unidos, porque me casei com um americano, de forma que nunca fui indocumentada. Tampouco tive que pedir trabalho, porque vivo dos meus livros. No entanto, através do trabalho da minha fundação, conheço de perto o drama dos imigrantes sem documentos que vêm da América Central e do México.