Fernando Meirelles compara o roteiro de Dois papas ao contexto brasileiro atual de “discordâncias ideológicas dentro de uma família, em que se rejeita tudo o que o outro fala, mas é preciso achar uma maneira de manter a relação”
Durante uma viagem a Roma, o roteirista Anthony McCarten se deu conta de que, pela primeira vez em mais de 500 anos, dois papas conviviam proximamente: Bento XVI, que havia renunciado ao posto em 2013 e morava em um convento no Vaticano; e Francisco, o 266º papa, que conduzia uma missa na Praça de São Pedro. O inusitado do fato o inspirou a imaginar as situações e os diálogos que culminaram na renúncia de Bento XVI e na ascensão ao papado do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio. Foi assim que surgiu a ideia do filme Dois papas, que estreia no serviço de streaming Netflix nesta sexta (20). Em Belo Horizonte, o Cine Theatro Brasil Vallourec realiza sessões do filme neste sábado (21), às 18h e às 20h30, com ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia).
O longa, que tem direção do brasileiro Fernando Meirelles, retrata os bastidores da transição de poder entre o sisudo alemão Joseph Aloisius Ratzinger – papel conferido a Anthony Hopkins – e o cordial jesuíta argentino, interpretado por Jonathan Pryce, cuja semelhança física com seu personagem chega a ser impressionante.
Desde o pedido para se aposentar feito por Bergoglio a Bento XVI, em 2012, por discordar dos rumos que a Igreja Católica vinha tomando, até os escândalos do notório caso do "Vatileaks" – sobre o vazamento de documentos secretos que revelaram a existência de uma ampla rede de corrupção, nepotismo e favoritismo dentro do Vaticano –, entre outros abusos de representantes da Igreja Católica e que culminaram na decisão inédita da renúncia do 265º papa, tudo está no longa, que tem 125 minutos.
Com foco na luta entre tradição e progresso, culpa e perdão, Dois papas coloca sob os holofotes o lado mais humano desses dois homens bem diferentes, confrontando elementos do passado para encontrar pontos em comum e construir um futuro para seguidores ao redor do mundo.
"É basicamente um debate entre duas posições com as quais estamos familiarizados: a tradicionalista e a reformista, tentando encontrar pontos de contato", revelou, em material promocional do filme, McCarten, indicado ao Globo de Ouro pelo roteiro. O longa teve outras três indicações: Jonathan Pryce (melhor ator), Anthony Hopkins (melhor ator coadjuvante) e melhor filme.
Na entrevista a seguir, Fernando Meirelles fala sobre a produção.
Como o projeto de Dois papas chegou até você?
Em 2015, um produtor americano me consultou sobre meu interesse em dirigir um filme sobre o papa Francisco. Disse que gostava do papa, mas, na época, estava começando a me envolver na abertura da Olimpíada do Rio com a Daniela Thomas e o Andrucha Waddington e não poderia. Ele sumiu. Depois dos Jogos Olímpicos, me contatou de novo para dizer que haviam achado uma peça nunca encenada e pediram uma adaptação para o cinema ao próprio autor, que é roteirista também. Quando li, apesar de nunca ter tido grande interesse pelo Vaticano, embarquei. O filme aborda questões de conexão com um mundo além do nosso, que valem para qualquer um que tenha alguma espiritualidade. Fala sobre a agenda política do papa contra o sistema econômico e, principalmente, sobre tolerância, uma mercadoria em falta hoje em dia.
Conhecia a história, acompanhou os fatos quando ocorreram? O que mais o impressionou nessa trama?
Na época, acompanhei a saída de Bento XVI, mas sem grande interesse. O que me impressionou foi o roteiro. Fora a qualidade dos diálogos, gostei da ideia de ter esses dois homens muito inteligentes, mas que discordam em quase tudo, tendo que encontrar um chão comum por fazer parte da mesma instituição. Isso me lembrou a situação hoje, de discordâncias ideológicas dentro de uma família. Rejeita-se tudo o que o outro fala, mas é preciso achar uma maneira de manter a relação. Também imaginei que, se eu conseguisse dar um tom muito pessoal, poderia ser interessante o mergulho na intimidade de um papa. Não é um filme do tipo que você quer saber o que vai acontecer, até porque todo mundo já sabe, mas destes onde cada momento tem um interesse e uma surpresa.
Quem escolheu os atores?
Fui eu. O Jonathan era uma escolha óbvia pela semelhança, mas o que me deu certeza foi uma entrevista dele a que assisti. Senti que, mais do que traços físicos, ele tem a mesma energia do papa Francisco, uma certa simplicidade e humor cativantes. Já havia trabalhado com Hopkins e nos demos bem. Foi a primeira opção para fazer o Bento XVI e, para nossa alegria, ele topou de cara. É um ator muito técnico e muito culto. Nos seus cinco meses de preparação, trocamos muitos e-mails interessantes sobre cada aspecto do texto.
Onde foram as locações?
Nada foi rodado no Vaticano. Construímos uma réplica da Capela Sistina em Cinecittà (complexo de estúdios na capital italiana) e as outras locações foram ao redor de Roma. Para as filmagens na Argentina, pudemos usar algumas locações onde a história de fato aconteceu, como o Colégio Máximo, o seminário onde o então cardeal Bergoglio era diretor. Filmamos também em seu quarto, na igreja e no confessionário onde ele recebeu seu chamado. Ainda fomos para Córdoba, para onde ele foi mandado pelos jesuítas quando a ditadura acabou.