Jornal Estado de Minas

Publicação destaca faceta de cronista de Carlos Heitor Cony

 Carlos Heitor Cony (1926-2018) era um jornalista que fazia crônicas. E, por isso, muitas vezes, ele escrevia textos políticos que desagradavam a gregos e troianos. Por isso, o presidente e editor da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, José Salles Neto, decidiu esquecer as crônicas políticas e se concentrar nos textos de teor literário, com temas existenciais ou memorialistas. Salles selecionou 32 crônicas para a edição especial da Confraria dos Bibliófilos.



Há oito anos, procurou Cony com a proposta de fazer uma edição especial de suas crônicas. O escritor refugou: “Não gosto de antologias de crônicas”. Ele não queria confusão com as editoras que detinham os direitos de reprodução dos livros.

Mas Salles não desistiu do projeto, que acalentava havia muito tempo, com a intenção de que fosse ilustrado por Liberati, artista gráfico, desenhista e chargista, que passou pelos mais importantes jornais e revistas do país: “Pensei no Liberati porque ele representa o rosto das pessoas de maneira magistral. É um chargista de mão cheia. Colecionava as charges dele havia muito tempo. Ele tem um estilo que estaria próximo do inventado por Jaguar. Este é um livro que está sendo gestado há muitos anos”, comenta Salles.

As edições da Confraria dos Bibliófilos do Brasil são decididas por votação. E as crônicas de Cony sempre estiveram entre as mais requisitadas. Elas tocam em temas existenciais, memórias e evocações. Com exceção de uma, dedicada ao poema O corvo, de Edgar Allan Poe, todas foram publicadas pelo jornal Folha de S.Paulo.



A corrida imaginária de submarinos noturnos no Rio de Janeiro dos anos 1950 é pretexto para uma divertida crônica sobre o amor fugaz dentro dos carros em uma época na qual não havia motéis. Uma viagem à Andaluzia inspira reflexão sobre Dom Quixote e a loucura de desejar um mundo melhor: “Atravessei a Andaluzia, deixei o carro em Málaga, comprei umas garrafas de vinho muito doce, tomei o navio e deixei para trás a vontade de ser um homem louco, embora melhor”.

Embora tenha estampa de sisudo, Cony brinca sobre a comédia de erros dos amantes em Aderbal num rendez-vous da Bento Lisboa. Diverte-se com os lances de um homem que o detestava. A mitificação de certas instalações de arte é alvo de fina ironia: “O problema das instalações, em princípio, é que elas não chegam a ser bonitas e, no geral, não chegam a ser nada além de uma intenção de dizer alguma coisa que não precisa ser dita. E, dita, fica por isso mesmo”.

CHAPLIN 

Uma das crônicas mais pungentes é a dedicada a Chaplin, tema recorrente no escritor: “As engrenagens de uma sociedade endurecida no inumanismo trituram e despedaçam o fraco homenzinho que insiste em não morrer, que insiste em manter, intactas, a dignidade e a vida”.



Em relação a outros cronistas, Cony não era muito de se ater aos fatos do cotidiano presente ou imediato. Tendia a evocar acontecimentos do passado: “É por isso que as crônicas políticas são muito datadas. Mas, ao mesmo tempo, ele também fazia muitas crônicas literárias, crônicas que serão lidas daqui a 100 anos. No máximo, ele criava um laço com o momento. Estacava naquilo que estava escrevendo”.

Quase memória é um dos livros mais marcantes de Cony. Ele tinha talento para explorar uma veia memorialista: “Tanto que as crônicas dele iam para o caderno de cultura do jornal. Algumas crônicas são puxadas para artigos. Mas essas são as mais datadas. As melhores são as de evocações”.

As crônicas literárias se expressam em uma linguagem muito apurada, precisa e vivaz. “Acho a linguagem do Cony muito boa. É um escritor de frases longas, não é de períodos curtos. Por trás daquilo tem um escritor, mas sem ser pedante. Nunca quis ostentar cultura. Porque existem cronistas que querem mostrar erudição. Mas o Cony queria mostrar conhecimento”, comenta Salles.



Além do fraseado elegante, as crônicas de Cony também se distinguem pela estrutura muito próxima do conto: “Elas se afastam do formato clássico da crônica do dia a dia. Esse é outro aspecto literário dos seus textos. Por isso, qualquer pessoa pode abrir o livro, ler e gostar das crônicas. Não são datadas”.

A memória é um filão inesgotável. O olhar de Cony se manifesta por meio das experiências que ele viveu: “Sempre revive os fatos e cria novas versões sobre eles. Ele escreveu quatro crônicas sobre Charlie Chaplin, pela visão humanista que o fascinava no ator e diretor”.

Cony sustentou opiniões, muitas vezes, irritantes. Foi conservador e contestador. E tinha uma visão pessimista da existência humana. Tem muitas crônicas que falam da morte. E alguns chegam a considerar que ele seria cínico. Mas Nelson Rodrigues escreveu que Cony era o falso cínico: “Acho que o Nelson Rodrigues estava certo”, afirma Salles. E emenda: “No fim, desce e põe os pés no chão para ver a miséria humana. Criava sonhos nos quais parece que saía da terra. E logo voltava ao chão para exercitar a compaixão humana. Escrevia sobre os balões subindo na época das festas de são-joão, mas sempre descia para ver a miséria das favelas”.



As edições da Confraria dos Bibliófilos do Brasil são decididas por votação. As crônicas de Cony sempre estiveram entre as mais requisitadas: “E ocorre algo interessante, existem pessoas jovens na Confraria. Cony era querido por várias gerações de leitores”. 

TRECHO
Um vagabundo no século 20

Foi a partir de O vagabundo que Chaplin passou a trabalhar “em equipe com a realidade”, segundo a clássica afirmação de Eisenstein. Émile Zola foi acusado de crime igual quando procurou subordinar a ficção à realidade imediata que o circundava. Em O vagabundo, o ébrio, o grosseiro e o sensual de Carlitos banca o tirano cedem lugar ao futuro moralista que se completaria em Rua da Paz: “O amor é ajudado pela força. A doçura do perdão traz a esperança e a paz” foi a epígrafe que o próprio Chaplin escreveu para explicar a sua primeira parábola social. Um dos truques geniais de Chaplin é que ele se diverte e diverte os outros repetindo aquela cena dos atores do Hamlet: “a reconstituição do crime diante dos assassinos. Ele reconstitui, diante de cada assassino, a todos nós o nosso crime. Saímos dos filmes de Chaplin com a consciência mais ou menos pesada de que, em algum lugar, em algum tempo, por algum motivo, cometemos um crime horrendo, de cuja expiação somos impotentes”.

Carlos Heitor Cony — Seleção de crônicas
Ilustrações de Liberati
 Edição da Confraria dos Bibliófilos do Brasil (96 páginas)
Venda de exemplares avulsos e filiação à Confraria pelo fone: 61. 3435-2598.