Aos 17 anos, quando se preparava para estudar letras na Universidade Federal Fluminense (UFF), Fernanda Young (1970-2019) escreveu seu primeiro romance – e nunca o publicou. Depois de reencontrar por acaso os originais que julgava perdidos, a escritora achou que Posso pedir perdão, só não posso deixar de pecar deveria vir à luz em 2019, como um fruto do fim dos anos 1980, que desafiaria convenções num ambiente de conservadorismo crescente. Seria difícil de tragar para muita gente, ela imaginou.
A editora Leya Brasil e a família de Fernanda levaram adiante o projeto de colocar nas livrarias o livro gestado antes da fama pela autora (Vergonha dos pés, A mão esquerda de Vênus), roteirista (Os normais, Shippados), apresentadora (Saia justa, Irritando Fernanda Young) e atriz – Fernanda se preparava para estrear no teatro, em agosto do ano passado, quando não resistiu a uma crise de asma durante um fim de semana de descanso dos ensaios de Ainda nada de novo, em seu sítio na cidade de Gonçalves, no Sul de Minas.
O lançamento de Posso pedir perdão, só não posso deixar de pecar ganhou o tom de uma homenagem póstuma, no qual se envolveu sobretudo a agente literária Eugênia Ribas-Vieira, editora e amiga da escritora. “Pensando de maneira abrangente, esse livro dá continuidade a um trabalho que vínhamos fazendo desde A mão esquerda de Vênus (2016) – o de recuperar a obra não editada da Fernanda”, afirma Eugênia.
Ela conta que foi durante uma de suas arrumações de casa que Fernanda encontrou o original do livro, escrito em 1987, o que a deixou eufórica. “Nunca, até então, ela tinha relido, e disse que precisávamos ler juntas. O livro era muito surpreendente. Tinha sua estranheza, suas manias, suas loucuras”, comenta Eugênia. No diálogo que tiveram depois de concluída a leitura, Fernanda comentou que o livro era “muito louco, mas genial”, conta a agente. “E eu lhe disse: 'Fernanda, precisamos publicar'.”
Eugênia então apresentou a ideia de publicar a obra à diretora-geral da Leya Brasil, Leila Name, que gostou da ideia. “O livro mostrava a Fernanda que viria pela frente. Tudo já se encontra ali ao leitor que a segue e que pode enxergar nas entrelinhas”, observa Eugênia.
O prefácio coube a uma das filhas da roteirista, Cecília Madonna Young, que nunca havia lido um livro da mãe e se surpreendeu. “Para aqueles que estão, como eu, lendo um livro de Fernanda Young pela primeira vez: se entreguem a esse mundo. É louco, cativante e espinhoso – mas prometo que vale a pena”, sugere.
A trama tem como protagonista Nina Tiengo, uma garota que se assusta com sua primeira menstruação e vai descobrindo os prazeres da vida, como o sexo, a poesia e a música. Na cidade pequena em que mora, as palavras do pastor Ortiz guiam os fiéis, incluindo sua família, mas Nina, criada para levar uma vida “dentro dos padrões”, luta para vivenciar tudo o que lhe seduz.
VEEMÊNCIA
Na avaliação de Eugênia, o que mais chama a atenção no romance é a veemência da escrita da autora e sua fluidez narrativa, característica que Fernanda iria manter e acentuar em sua produção futura. “Fernanda escrevia com fé. Escrevia rápido e sabia tirar o leitor de um lugar de conforto. Essa manipulação do leitor, a quem a autora dá as mãos no início do livro e leva, calmamente, a um terreno inédito, cheio de personagens inusitados (como a mulher que teve 125 filhos) e de pensamentos muito originais. Fernanda sempre ocupou este lugar de 'original'.”Para ela, a escritora e amiga era uma pensadora que não estava no eixo do lugar-comum, em qualquer época que se tome como exemplo. “E esse primeiro romance tem isso: esse convite a visitarmos um ponto de vista muito original sobre a personagem Nina e uma vida que poderia ter seu rumo comum, numa cidade pequena do interior. Mas Nina faz tudo diferente. Ao modo Fernanda Young.”
Eugênia Ribas-Vieira vê alguns pontos de contato entre Nina Tiengo e Fernanda Young. “A paixão pela vida, a curiosidade sobre os outros. Fernanda sempre buscou os outros, sempre quis descobri-los, saber de suas histórias, de suas manias. Sempre, de alguma maneira, Fernanda se apaixonava pelos outros. Nina tem, por outro lado, uma ingenuidade que Fernanda não tinha. Claro que não conheci Fernanda nessa idade para saber, mas não acho que ela fosse ingênua como Nina.”
Foi há aproximadamente 15 anos que Eugênia – na época editora-assistente da Rocco – e Fernanda se conheceram. “Fui promovida a cuidar dos autores nacionais da editora e Fernanda era um deles, para minha felicidade. Eu já a acompanhava antes disso. Posso dizer que era uma fã”, afirma. Na primeira reunião, a escritora a recebeu em sua casa, e a agente literária lembra como as duas eram tão diferentes.
“Esteticamente, eu era seu completo oposto. Morena de praia, metida a intelectual – era assim que ela me descrevia (risos). E eu era supertímida. Mas ela se apegou. E eu me apeguei. Uma vez, me disse: 'Eugênia, com essa sua vozinha, você consegue tudo'. Hoje vejo que éramos duas destemidas, duas corajosas. Tínhamos isso em comum.”
Com o passar dos anos, as duas se tornaram amigas e confidentes. Fernanda contava praticamente tudo para Eugênia: problemas com dentista; com os filhos; conversas com o marido, Alexandre Machado; questões políticas. “Ganhei a confiança dela nos momentos mais críticos como autora. Ela tinha muita insegurança, embora não passasse isso ao seu leitor. Um dia, antes de um lançamento, dizia querer desistir. Podia ficar agressiva, às vezes. Sempre estive bem perto. Sempre estive do seu lado. O tempo nos trouxe a confiança. Era algo mútuo”, afirma Eugênia, que teve uma filha no ano passado e a chamou de Maria Fernanda, em homenagem à amiga.
Segundo a editora, Fernanda Young achava importante lançar o livro em 2019, dado o contexto político do país e seus efeitos na área da cultura. “Fernanda estava muito assustada com o obscurantismo cultural ao qual o governo está nos levando. Muito assustada. Ela me disse: 'Vão me queimar em praça pública, mas vamos publicar'. Cheguei a pedir duas edições no livro por causa do conteúdo, que poderia ser considerado blasfemo. Mas ela me disse que não mudaria nada”, revela.
FALTA
A ausência de Fernanda Young dói na amiga, que sente falta especialmente de seu entusiasmo e de seu humor desconcertante. “Tento continuar ouvindo Fernanda dentro de mim. É como se continuasse falando comigo. Falávamos muito no dia a dia, tanto bobagens como assuntos sérios. Tem sido difícil encarar sua falta. Foi tudo muito de repente.”
Eugênia Ribas-Vieira lamenta não só sua perda pessoal, mas também a perda da figura pensante para o país. Ela considera que o cenário intelectual brasileiro se viu privado de uma artista única e original e uma força, infelizmente não devidamente valorizada. “Temos a tendência colonialista de valorizar tudo o que vem de fora. (A artista sérvia) Marina Abramovic é ovacionada, (a escritora francesa) Sophie Calle... Mas não conseguimos dar devido valor ao que tínhamos aqui tão próximo, tão ao nosso alcance. Fernanda era uma grande artista. Não conseguimos separar vida e obra; tudo ela transformava e criava. Um vigor. Uma luz. E sempre nos tirando do lugar. Sempre. Não há quem não se comova com Fernanda, seja com amor ou ódio, ela nunca passou incólume. Resumindo: sua vida era continuidade de sua arte e sua arte, continuidade de sua vida. Não dava para separar.”
Posso pedir perdão,
só não posso deixar de pecar
• Fernanda Young
• Editora Leya Brasil (160 págs.)
• R$ 45
TRECHO
“Posso pedir perdão, só não posso deixar de pecar. Tudo o que eu gosto me parece sempre um pré-pecado. Por que teremos sempre que nos punir pelo que gostamos? Por que devo ser considerada uma alma ruim pela balbúrdia do prazer? O prazer será sempre uma motivação egoísta? E a palavra será que sempre me mostrará a verdade do que escuto? Será sempre pregada como palavra de cura e salvação?
SOB O SIGNO DE TOURO
Fernanda Young era taurina do dia 1º de maio e tinha muito orgulho disso. Seu signo astrológico se faz presente no livro. O símbolo de Touro, que lembra um chifre (Y) e forma a inicial do sobrenome dela (Young), está na primeira página de cada capítulo. Já a capa, criada por uma de suas filhas, Estela May Young, que é ilustradora, traz um touro sendo domado por uma menina chamada Jéssica, uma personagem que a escritora incorporava quando estava com a família, para representar sua criança interior.