Na continuação da entrevista exclusiva ao Estado de Minas, o cineasta Fernando Meirelles comenta as diferenças entre os atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, critica a paralisação da Ancine e revela que seu próximo longa será sobre a crise climática.
O teólogo Leonardo Boff, que conviveu com Jorge Bergoglio e Joseph Ratzinger, teceu elogios em artigo sobre o filme, dizendo que Dois papas “é uma bela metáfora da condição humana”. Mas fez uma ressalva sobre a forma que Bento XVI é apresentado: “O filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza: em certa cena, levanta a voz e quase grita, o que me parece totalmente inverossímil e contra seu caráter”. Como você responde a esse tipo de crítica que destaca as diferenças entre as pessoas e os personagens?
Li o artigo. Foi o que mais gostei entre tudo que li a respeito do filme. Boff está absolutamente certo em relação ao que diz sobre Ratzinger. Também acho que o verdadeiro papa jamais gritaria daquela maneira. Aquele foi o único take no qual Hopkins levantou a voz. Depois de rodar a cena, ele me pediu para não usar o grito: ele sentia que estava errado. Mas, ao montar a cena, o grito criava um silêncio posterior que pontuava bem toda a sequência. Entre ser fiel ao papa ou criar drama, não resistimos e optamos pela segunda via. É um filme, afinal, não um documentário. Um filme com o verdadeiro Ratzinger seria muito chato, aliás; o carisma dele é inversamente proporcional ao seu intelecto. Não gostava de Ratzinger quando comecei (o projeto), mas aprendi a admirá-lo.
Anthony Hopkins e Jonathan Pryce são dois atores experientes. Quais as diferenças de método de trabalho entre os intérpretes de Ratzinger e Bergoglio?
Eu andei usando uma analogia com a música e acho que o Jonathan concordou, pois ouvi ele usando meu argumento em um debate de que participamos. O que disse é que Hopkins parece mais um músico clássico de orquestra: o spalla, digamos. Ele estuda muito a partitura/roteiro e usa as palavras para se apoiar. No dia da filmagem, ele sente e interpreta aquelas palavras que já estão incorporadas. Jonathan é mais jazz. Tentou entender a linguagem corporal do papa Francisco, seu estado mental e, no dia, como um músico de jazz, estava pronto para fazer o que lhe pedisse. Trocar falas, improvisar. Mas, apesar de trabalharem de modo diferente, se entenderam muito bem.
O deputado Daniel Silveira, do PSL do Rio, fez o seguinte comentário em uma rede social: “O cineasta esquerdista Fernando Meirelles, e exibido na plataforma progressista Netflix, fez uma obra 100% ficcional. Retrataram Bento XVI como um inimigo e Francisco como um santo”. Concorda com a análise do deputado?
Não conheço o deputado, mas, pelo comentário e pelos adjetivos usados, creio que já sei o que ele pensa e o que defende. Ideologia de novo. Oh, Lord! Dois papas é um filme sobre tolerância, é justamente sobre a superação desta visão polarizada do mundo que o deputado expõe. Este espírito sectário é o que pode nos destruir. O nacionalismo que imagino que ele defende é a praga que coloca em risco a humanidade ou muitas vidas. Talvez o deputado não tenha assistido ao filme até o final e não tenha entendido que é um filme crítico justamente à sua postura. Vamos dar o benefício da dúvida. Mostrei Dois papas em Roma para o cardeal (Peter) Turkson, de Gana, um dos cardeais mais próximos de Bento XVI, e ele não só gostou como nos pediu um DVD para mostrar para o papa. Gostou justamente pelo filme ter superado a polarização que o deputado enxergou. Mandamos o DVD, mas não sei o que aconteceu.
Com as mudanças nas diretorias e a paralisação dos projetos na Ancine, para onde vai a produção audiovisual brasileira?
Muitos colegas estão parados esperando a burocracia ser destravada. Um ano já teria dado tempo para ter organizado o setor, que, aliás, estava saudável em 2018. Não sou paranoico, mas é difícil não achar que o desmonte não seja intencional. Curioso que as áreas que são mais caras para mim, e que julgo importantíssimas para qualquer país desenvolver, são justamente as que estão em piores condições no Brasil: educação, meio ambiente e cultura. Sem estas coisas não se constrói um país, não conheço nenhum exemplo. Sem nióbio é possível, conheço dezenas de exemplos.
Como avalia a experiência e a repercussão da série Pico da neblina (HBO)? O que aprendeu ao trabalhar com o seu filho?
A série foi bem, recebeu uma nomeação ao Grammy Internacional e alguns prêmios no Brasil. O Quico, meu filho, criou a série e era o diretor-geral, eu era um funcionário dele e seguia ordens. A fila anda. Foi bonita a experiência.
Quando você volta a filmar um longa-metragem no Brasil?
O próximo é sobre a crise do clima – este papo de esquerdistas, como diria o deputado – e terá partes rodadas no Brasil. Por mim, filmaria só em português, mas isso limita a penetração de um filme. Estou tentando fazer um documentário sobre solo, mas não estou conseguindo financiamento. A água aqui não está para peixe.
Com quais papas do cinema gostaria de conversar por uma tarde inteira?
Cruzei com Todd Phillips, diretor de Coringa, numa mesa redonda de que participamos e nos demos bem. Bateu o santo. Combinamos de almoçar durante a semana do Globo de Ouro, mas acabei não tendo tempo. Espero que ainda possa encontrá-lo, tenho muitas perguntas sobre o seu filme, que adorei. Também sou um fã de Sam Mendes há anos e poderia passar três horas perguntando como ele filmou as diversas sequências de 1917. Uma por uma. Eles não são papas, ninguém é, mas são artistas que admiro. Os melhores deste ano no cinema.
Montagem é um dos
pontos altos do filme
Um dos destaques de Dois papas é a montagem, que dribla a monotonia ao evitar o mero registro das longas conversas entre os dois personagens. “Compreendemos que o ritmo estava um pouco na fala de dois atores gigantes, e tentamos explorar isso nos diferentes ritmos que o filme tem”, conta o montador, o paulistano Fernando Stutz, de 34 anos. “Nossa intenção foi sempre explorar a imagem e o som para que servissem de rampa para as palavras, às vezes de forma alegórica, às vezes de forma sutil, às vezes na forma do contraponto, às vezes óbvia mesmo.”
O trabalho do montador ainda é especialmente cuidadoso na inserção dos flashbacks da vida do papa Francisco, filmados em diferentes cores e texturas. “Existem blocos confessionais do cardeal Bergoglio que não são externos nem adicionais à narrativa, são o miolo da conversa. São esteticamente diferentes das conversas, preto e branco nos anos 50, saturados e granulados nos anos 70 e depois amarelados nos anos 80/90”, lembra.
“O que tivemos que fazer foi reduzi-los ao essencial e, em algum momento, isso foi difícil”, reconhece Stutz. “Mas a mistura de materiais sempre nos interessou, sem receio de que fossem tomados como ‘corpo estranho’. São memórias e, como tais, são fragmentadas, desiguais.” Ele resume a dinâmica do trabalho com Meirelles: “A orientação do Fernando sempre foi a de experimentar: de forma honesta, testemunhando o conteúdo e o espírito das palavras da história.” (CM)
Chances de Oscar
Dois papas tem boas chances de conseguir não uma, mas várias indicações ao Oscar amanhã, segundo a previsão de diversas publicações americanas especializadas em cinema. Até agora, o longa de Fernando Meirelles recebeu 45 indicações a prêmios. No Globo de Ouro, realizado no domingo passado (5), concorreu a melhor filme dramático, melhor roteiro (Anthony McCarten), melhor ator em filme dramático (Jonathan Pryce) e melhor ator coadjuvante em filme dramático (Anthony Hopkins), mas não venceu nenhuma das disputas.
Meirelles foi à cerimônia em Los Angeles e aprovou a decisão da Associação dos Correspondentes Estrangeiros em Hollywood, que promove o jantar do Globo de Ouro, de servir um menu inteiramente vegano aos convidados. Foi a primeira vez na história das 77 edições do prêmio que isso ocorreu.
“Gostei do fato de eles terem desistido de servir peixe e optado por um jantar vegano. Sopa de beterraba de entrada e um cogumelo com arroz que chamaram pomposamente de vieiras veganas. O bolo de chocolate de sobremesa também não tinha leite. Estamos consumindo e esgotando nosso planeta. Ao dar o exemplo num evento tão luxuoso, de certa forma, estão dizendo que servir carne num evento de gala é cafona, o que concordo inteiramente. Em seu discurso, o Joaquin Phoenix (vencedor pelo trabalho em Coringa) disse isso com outras palavras”, afirma o cineasta.
Se a participação de Dois papas no Oscar só será conhecida amanhã, é certo que o filme terá lugar de destaque no Bafta, o prêmio de cinema britânico, no qual obteve cinco indicações, bastante semelhantes às do Globo de Ouro – como melhor filme do ano, para os dois atores principais, o roteiro e também a seleção de elenco.