Em Motorrad (2017), experimentação do diretor Vicente Amorim (O caminho das nuvens, Corações sujos) no gênero terror, a trama fictícia mostrava um grupo de trilheiros perseguidos no interior de Minas Gerais por motoqueiros assassinos e armados com facões. Em A divisão, seu novo longa, que estreia nesta quinta-feira (23) nos cinemas, o horror vem da realidade. A trama se baseia na onda de sequestros que apavorou o Rio de Janeiro em 1997, tendo sido violentamente combatida pela polícia.
A divisão é mais um exemplo de produto híbrido no campo do audiovisual. Lançada em julho pelo GloboPlay, serviço de streaming da emissora carioca, com cinco episódios, a série homônima tem o mesmo enredo e núcleo principal de personagens. Porém, o filme foi concebido anteriormente. “E não é a mesma história”, diz Amorim, que assina a direção dos dois produtos.
A produção é de José Júnior, fundador da ONG carioca AfroReggae. “Primeiro foi feito o roteiro do longa, que nos deixou satisfeitos. Então partimos para a série. É o mesmo assunto, mas com um recorte diferente. Não é justo dizer que a série seria um subproduto. Foram desenvolvidos juntos”, afirma o diretor.
José Luiz Magalhães, ex-inspetor-chefe da Divisão Antissequestro (DAS) da Polícia Civil carioca, se juntou ao time de roteiristas. Ele acompanhou de perto a sucessão de acontecimentos que fez o índice de sequestros cair de 11 por mês (tendo indivíduos da classe média e da elite da cidade entre as principais vítimas) para zero no Rio, nos anos 1990.
“O que se passou no Rio de Janeiro há 20 anos é um ponto de partida para refletirmos sobre a polícia que temos hoje, no Brasil todo. A polícia tem como objetivo principal proteger a elite, separar a elite do resto. Isso é claro em todas as ações policiais que a gente vê no país e ficou desnudado durante essa crise dos sequestros no Rio nos anos 1990. Por que o sequestro foi a única modalidade de crime erradicada? Porque incomodava a elite. Nenhum outro tipo de crime teve seus índices melhorados dessa forma”, afirma Amorim.
Preservando identidades e criando personagens fictícios, o filme mostra os polêmicos caminhos dessa campanha. Quando a filha de um deputado, postulante ao governo do estado, interpretado por Dalton Vigh, é sequestrada, a solução encontrada pelo chefe de polícia Paulo Gaspar (Bruce Gomlevsky) para resgatá-la é confiar a missão a três agentes contraventores.
Santiago (Erom Cordeiro), Roberta (Natalia Lage) e Ramos (Thelmo Fernandes) são policiais que “ganham um extra” sequestrando e extorquindo dinheiro de traficantes. A corrupção do trio é do conhecimento de Gaspar, que planejava entregá-los à Corregedoria, mas preferiu aproveitar os conhecimentos do grupo.
Enviados à DAS, eles terão que lidar com dois delegados: o incorruptível mas cruel e sanguinário Mendonça (Silvio Guindane) e Benício (Marcos Palmeira), de abordagem mais tranquila e interesses escusos. Durante as investigações para localizar e libertar a jovem, à medida que a DAS se torna mais eficiente e violenta em suas ações, são expostos interesses conflitantes dentro e fora da corporação, em muitas cenas de ação, perseguição e violência, sem poupar sangue, tortura ou assassinatos a sangue-frio.
“Essa história mostra que para resolver um problema de segurança pública, havendo vontade política é possível. Mas, no Rio e no Brasil, ela é determinada pela elite, que não vai poupar nenhum escrúpulo, nem o de usar policiais sanguinários ou corruptos para resolver o problema que ela está enfrentando. Há esse viés político, mas também há o humano, da busca de redenção desses policiais, que, em vez de condenados, recebem uma missão que se transforma em uma oportunidade para isso”, analisa o diretor.
Redenção
No grupo de policiais em busca de redenção na operação antissequestro, o de maior desaque é Santiago, que ganha o protagonismo da história. “Todo processo dentro desse trabalho foi muito cuidadoso, em pequenos detalhes artísticos, de postura, de como manejar a arma. Uma questão importante foi o trabalho do José Júnior e do AfroReggae, que tem 27 anos de atividade e um histórico de mediação entre poder público, comunidades e tráfico, resolvendo várias situações delicadas e trabalhando a reinserção social. Eles tinham bastante know-how nesse contexto e foi importante para entendermos a complexidade de tudo isso”, diz Erom Cordeiro, intérprete do personagem. Na opinião do ator, o filme “mostra um funcionamento eficiente da polícia, mas sem esconder as engrenagens podres e enferrujadas que ela tem”.