Serão 113 filmes, de 17 estados, entre curtas e longas-metragens, exibidos até o próximo sábado (1º/2). A partir desta sexta (24), a pequena Tiradentes, no interior de Minas Gerais, concentrará a potência da produção cinematográfica independente brasileira na 23ª edição da Mostra. Em um momento de incertezas para o setor, mas de efervescência criativa e diversidade de produções, o evento propõe uma reflexão sobre novos caminhos que possam ser traçados para e pelo cinema.
O filme de abertura, cuja exibição está prevista para as 21h de hoje, no Cine-Tenda, é o inédito Os escravos de Jó, do cearense Rosemberg Cariry. Filmado na cidade histórica de Ouro Preto, o longa conta a história do jovem estudante Samuel, interpretado por Daniel Passi, filho adotivo que desconhece seus pais biológicos. Enquanto busca respostas para inquietações particulares relacionadas ao seu passado, ele conhece a imigrante palestina Yasmina (Daniela Jesus), que estuda restauração de bens culturais na cidade histórica. Os dois vivem um romance que oferece ao protagonista novas interpretações do cotidiano.
“É um trabalho de construções identitárias desses jovens, com heranças do passado e possibilidades de construção de um novo futuro. Tem a ver com esse momento de grande tensão que vivemos hoje”, afirma Cariry. O diretor justifica a escolha de Ouro Preto como palco da trama pela simbologia do Barroco. “É uma cidade de herança colonial importante, marcada a sangue e fogo, que diz muito sobre a história colonial do Brasil, da escravidão, da exploração, de contradições profundas. Ao mesmo tempo, há o barroco que se preservou e hoje é patrimônio da humanidade, além de ser uma cidade universitária, de encontros e intensa dinâmica social e cultural, onde esse passado se insere na contemporaneidade. Ali estão esses jovens em busca de respostas sobre o próprio passado, mas também de um futuro”, diz Cariry, que viveu em Ouro Preto no começo dos anos 1970, onde terminou de cursar o ensino médio.
CONSCIÊNCIA
A história de Daniel e Yasmina é mediada pelo livreiro Jérèmie, de ascendência judaica magrebina, interpretado por Antônio Pitanga, que é o homenageado da Mostra de Tiradentes junto com a filha, a atriz Camila Pitanga. “O personagem é um homem muito culto, que passou por experiências marcantes e orienta esse jovem, como uma espécie de consciência, por ter uma visão mais otimista do futuro, da humanidade, de que é possível construir através da arte, do encontro, do amor e da celebração da vida”, explica o diretor, que define Pitanga como “um dos mais importantes atores do país. Ele simboliza o próprio povo brasileiro, no seu talento, garra e resistência”.Antônio e Camila Pitanga estarão presentes em Tiradentes, e a homenagem aos dois se estende a outros pontos da programação. Nos próximos dias, serão exibidos os longas Na boca do mundo (1978), única experiência de Antônio Pitanga na direção, e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), de Beto Brant e Renato Ciasca, que tem uma das atuações cinematográficas mais importantes da carreira de Camila.
Além desses longas, o documentário Pitanga, dirigido por Camila, em parceria com Brant, que conta a história do pai dela, estará na programação. Neste sábado (25), às 12h30, a dupla de homenageados será a atração em uma mesa de debates sobre suas respectivas trajetórias.
Raquel Hallak, diretora da Universo Produção e coordenadora-geral da Mostra de Cinema de Tiradentes, justifica a escolha dos homenageados pelo fato de “representarem diferentes gerações”. “São dois ícones. Antônio, com 80 anos, Camila, com 42, cada um com uma trajetória diferente. Ele no Cinema Novo, ela começando aos 5 anos, mas ocupando um imaginário importante na TV. Essa diversidade, essa força de trabalharem juntos e em família, eles representam a brasilidade, nossa origem, nossas contradições do país e têm essa força na identidade de cada um”, afirma.
TEMA
O fluxo entre passado, presente e futuro, com o objetivo de pensar o novo de forma otimista, marcará a 23ª Mostra de Tiradentes, cujo tema é “A imaginação como potência”. “A temática é um pouco refletida a partir daquilo que vemos nos filmes em exibição e, ao mesmo tempo, no que propomos nos outros momentos da Mostra. O objetivo é um evento propositivo, que apresente o cinema como arte potente para utilizar imagens capazes de criar outros mundos possíveis. Nos filmes e debates que traremos à tona com profissionais do audiovisual, discutiremos como vamos construir nosso futuro, imaginando mundos possíveis com o cinema. O que ele está construindo? É uma interrogação para gerar reflexões para novas produções”, diz Hallak.Segundo a coordenadora, a temática proposta vai “nortear toda a programação”, que inclui 53 sessões de cinema, 39 mesas de debates, além de performances artísticas e musicais, oficinas e lançamentos de livros. Todas as atrações são abertas ao público. Centro das atenções a cada edição, a Mostra Aurora, que coloca em competição filmes inéditos de diretores em início de carreira, neste ano exibe oito longas. Um a mais que em 2019, quando Vermelha, de Getúlio Ribeiro, venceu a disputa.
Em 2020, os concorrentes são Cabeça de nêgo (CE), de Déo Cardoso, Cadê Edson? (DF), de Dácia Ibiapina, Mascarados (GO), de Marcela Borela e Henrique Borela, Pão e gente (SP), de Renan Rovida, Ontem havia coisas estranhas no céu (SP), de Bruno Risas, Canto dos ossos (CE), de Jorge Polo e Petrus de Bairros, além de Natureza morta, de Clarissa Ramalho, e Sequizágua, de Maurício Rezende, representando o cinema mineiro.
A programação cinematográfica ainda reserva outros 23 longas e um média-metragem, distribuídos entre a mostra Praça, que oferece bate-papo com diretores após as sessões, e Olhos Livres, dedicada a “realizadores com trajetória consolidada e em constante expansão”.
Alguns destaques são Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, de Bárbara Paz, premiado no Festival de Veneza; Pacarrete, de Allan Deberton, premiado no Festival de Cinema de Gramado; Sete anos em maio, de Affonso Uchôa, eleito o melhor filme na seção Novos Rumos do Festival do Rio; e Três verões, de Sandra Kogut, que rendeu a Regina Casé o prêmio de melhor atriz, também no Festival do Rio. O longa deve chegar às salas comerciais em março.
Fatia importante da agenda do evento, os curtas totalizam 81 exibições, representando 14 estados das cinco regiões, divididas nas mostras Panorama, Foco Minas, A Imaginação como Potência, Formação, Jovem, Mostrinha, Praça, Valores, além da competitiva Foco. Os números sinalizam uma produção diversa no Brasil, mas que coincide com um cenário preocupante.
“A questão da produção ainda não é sentida, pois muitos projetos foram viabilizados financeiramente alguns anos atrás. Dessa forma conseguimos manter o mesmo rigor de antes na programação. Porém, apesar de um bom momento do cinema brasileiro ganhando as telas do mundo, vivemos hoje um drama de ausência das estatais federais no incentivo à cultura. Quando há ausência de boas políticas públicas e descontinuidade de patrocínios, é mais que lamentável. Falta entendimento do governo sobre o setor que representamos na cadeia econômica, sem falar no lado social e humano”, argumenta Raquel Hallak. A coordenadora diz que a Mostra de Tiradentes não contará com patrocínios federais em 2020, apenas estaduais, via Cemig e Copasa, além de empresas privadas, e parcerias com Sesi e Sesc.
23ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Desta sexta (24) a 1º de fevereiro, em Tiradentes. Programação gratuita, disponível em www.mostratiradentes.com.br.