Jornal Estado de Minas

Renée Zellweger brilha como Judy Garland e pode levar o Oscar

Judy Garland com James Mason no filme Nasce uma estrela (foto: Warner/Divulgação)

O colorido está apenas no título. Judy – Muito além do arco-íris, filme que estreia nesta quinta-feira (30), traz o retrato em preto e branco, com nuances cinzentas, de um ícone do século 20: Judy Garland, eternizada como a Dorothy de O mágico de Oz, clássico do cinema lançado em 1939.



Dirigido pelo britânico Rupert Goold, conhecido por seu trabalho no teatro, com roteiro de Tom Edge e Peter Quilter, o longa foca no ocaso da carreira da diva. Convidada para uma temporada na casa de shows londrina Talk of the Town, em 1968, a cantora e atriz vive um dilema. Praticamente falida, solitária e ameaçada de perder a guarda dos filhos menores, enche-se de pílulas – para dormir e manter a forma. “Não tenho casa e nem um agente consigo arranjar”, lamenta em uma das cenas.

A pressão para fazer sucesso – e dinheiro – na indústria milionária do cinema sempre foi parte da vida de Frances Ethel Gumm, que começou a carreira ainda criança. Aos 2 anos, fez sua primeira apresentação. Aos 16, conquistou o mundo como Dorothy. Morreu de overdose acidental em 1969, aos 47 anos.


Inicialmente, Judy seria interpretada por Anne Hathaway, que até guarda alguma semelhança física com ela, mas o papel acabou ficando com Renée Zellweger. A eterna Bridget Jones se transformou – até fisicamente – para viver a menina prodígio de Hollywood.



Este é um filme de atriz. Zellweger “incorporou” Judy Garland, exibindo sua bela voz em todos os números musicais – talento já comprovado no longa Chicago (2002). Não foi à toa que a americana, de 50 anos, levou o Globo de Ouro 2020 de melhor atriz dramática e o prêmio do SAG Award, o sindicato dos atores. É fortíssima candidata ao Oscar, que será entregue em 9 de fevereiro.

Ironicamente, Judy Garland jamais ganhou a estatueta dourada. Em 1940, recebeu o Oscar Juvenil, prêmio especial em reconhecimento por sua atuação em O mágico de Oz e Sangue de artista. Em 1955, perdeu o cobiçado troféu para Grace Kelly, protagonista de Amar é sofrer. Judy protagonizava Nasce uma estrela, cujo remake, com Lady Gaga e Bradley Cooper levou multidões ao cinema em 2018 e conquistou o Oscar de melhor canção original (Shallow).

(foto: Wikipedia/reprodução)

TORMENTO

Judy – Muito além do arco-íris traz flashbacks nos quais Darci Shaw faz o papel da jovem atriz. Já ali se pode entender por que ela se tornou a estrela extremamente insegura, sem autoestima e viciada em drogas sintéticas.



O assédio sexual era comum em Hollywood já nos anos 1930, como mostra a conversa de Judy, nos bastidores das filmagens de O mágico de Oz, com o poderoso produtor Louis B. Mayer (Richard Cordery), um dos fundadores do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer. Não há novidade alguma no escândalo envolvendo o megaprodutor Harvey Weinstein, que estourou em 2017.

Para ser alguém, a atriz se submete à ditadura do estúdio, que controla sua vida pessoal – o namorico com o jovem ator Mickey Rooney, por exemplo. Tomava pílulas para dormir, ficar de pé, controlar a alimentação e a ansiedade. Disso resultou a mulher atormentada retratada no longa de Rupert Goold.

Uma das figuras mais importantes para o novo filme manter a fidelidade aos fatos foi Rosalyn Wilder, assistente de produção da Talk of the Town, “babá” da estrela na temporada londrina. Ela se tornou uma espécie de consultora da trama, na qual é interpretada pela irlandesa Jessie Buckley.



Na turnê britânica, Judy alternava momentos de glamour e vexame. Surge bêbada no palco, é xingada pelo público e alvejada com pedaços de pão. O filme tem momentos meio arrastados, mas é bonito, triste e melancólico.

Seis meses depois da temporada na Talk of the Town, Judy Garland morreu em Londres. Deixou os filhos Liza Minnelli, Lorna Luft e Joe Luft. Preparem os lenços, sobretudo para a sequência final. A canção Somewhere over the rainbow é o retrato de sua intérprete. A letra diz assim: “Em algum lugar além do arco-íris/ bem lá no alto/ os sonhos que você ousou sonhar/ oh, por que, oh, por que eu não poderia sonhar também?”.


ENTREVISTA
PETER QUILTER,
DRAMATURGO

“O que se vê na tela é Judy”

A voz já falseava, a silhueta mignon sofria com a dieta à base de pílulas, a solidão era constante, mas o carisma continuava intacto: bastava assumir o palco que, mesmo embriagada e desorientada, Judy Garland hipnotizava o público com sua performance visceral.


“Judy era divertida e triste, talentosa e incompetente, rica e pobre, inteligente e ignorante, repleta de amor e desesperadamente não amada”, comenta o dramaturgo inglês Peter Quilter, cuja peça Judy Garland – O fim do arco íris inspirou Muito além do arco-íris. Apesar do sucesso e do reconhecimento, a estrela foi atormentada pela eterna dor da solidão, diz Quilter nesta entrevista.

Judy Garland é associada à extrema tragédia ou ao extremo otimismo. Sua peça e o filme a mostram de uma maneira diferente, uma mulher complexa e multidimensional.
Sempre achei que uma das minhas mais importantes tarefas como dramaturgo era fazer com que as pessoas no palco se pareçam totalmente reais. Com frequência, nos oferecem falsas versões ou representações superficiais das pessoas. Judy foi um produto de Hollywood e assim nos era dito quem ela era. Uma starlet, uma lenda, uma tragédia. Mas as pessoas são muito mais complexas do que sua imagem na mídia. Na peça, quis mostrar cada parte dela. Divertida e triste, talentosa e incompetente, rica e pobre, inteligente e ignorante, repleta de amor e desesperadamente não amada. Quando um personagem é mostrado com todas essas contradições e complexidades, você acredita que é um ser humano real que está diante de você. É isso que esperamos dar ao público pela primeira vez. A sensação de que estão no quarto com Judy. Vê-la, conhecê-la, compreendê-la, respirar o mesmo ar.

Que tal o desempenho de Renée Zellweger?
Vi o filme ainda no seu primeiro corte, antes de qualquer outra pessoa. O desempenho dela é digno de um prêmio, incrivelmente poderoso. Ela não tentou personificar totalmente Judy Garland, mas capturar sua essência, seu espírito. É muito comovente e dramático. Você esquece que está vendo Renée Zellweger. O que se vê na tela é Judy.



A forma de trabalhar de Louis B. Mayer é trágica, um exemplo de como o sistema de Hollywood funcionava na década de 1930. Como Judy foi fabricada e destruída por esse sistema?
Era uma fábrica. Enquanto você continua a produzir as coisas boas que eles querem, tudo bem. Mas não têm nenhuma consideração pelo fato de que as pessoas são diferentes. Algumas sobrevivem às longas horas de trabalho, às demandas dos refletores, à pressão. Outras entram em colapso. E, quando não conseguem mais dar o que desejam, 18 horas de trabalho por dia, eles as marginalizam. Além disso, no caso de Judy, ela ficou viciada em todos aqueles medicamentos que lhe deram e os problemas pioraram. Remédios para dormir, para despertar, para dançar, para se acalmar. O sistema de Hollywood não destruiu todo mundo. Mas destroçou Judy. Ela nunca escapou do seu passado.

O filme revela todo o talento de Judy, mas ela continua solitária. Seria isso uma verdade?
Ela se casou com homens errados, todos eles. Alguns a usaram por sua fama e só queriam compartilhar os refletores. Outros eram mais gentis, mas eram gays, o que envolvia seus próprios dilemas. Ela nunca encontrou um amor verdadeiro, apenas o desfile de homens inadequados. Na peça e no filme, ela está vivendo com seu novo namorado Mickey Deans (o último marido). Mickey era um jovem proprietário de uma boate. Ele não conseguiu lidar com a situação e, no fim, a relação se tornou uma tragédia. Judy era amada pelo mundo todo, no cinema e no palco. Mas, em sua vida privada, ela jamais encontrou o amor que tanto desejava. (Estadão Conteúdo)