Ela tratou milhares de crianças em meio à escuridão de um hospital subterrâneo na Síria. Agora, a doutora Amani Ballour, protagonista do documentário nomeado ao Oscar The cave, espera que os holofotes de Hollywood sirvam para lembrar ao mundo uma guerra que entra em seu 10º ano.
Para a pediatra, de 32 anos, o hospital clandestino, apelidado de "A cova", situado nas proximidades de Damasco, não remete a um cenário cinematográfico. "Para mim, isso não é um filme. É a minha vida, minha realidade", contou Ballour.
O documentário, de 102 minutos, produzido pela National Geographic e a produtora Danish Documentary Films, tem imagens fortes da pediatra: limpando o sangue do rosto de algumas crianças na sala de cirurgia, chorando e também vítima do sexismo de homens que não aceitam que uma mulher seja responsável por um hospital, coisa raríssima em uma sociedade extremamente patriarcal.
"A princípio, ouvia comentários como 'não vai conseguir'. Tinha que demonstrar que nós, mulheres, somos capazes de estar em cargos de chefia".
Dirigido pelo sírio Firas Fayyad, The cave concorre domingo na 92ª edição do Oscar junto a outro documentário sobre conflitos, For Sama, da diretora Waas al-Kateab, premiada em Cannes em 2019 e ganhadora do Bafta de Melhor Documentário. É concorrente também do brasileiro Democracia em vertigem, dirigido por Petra Costa.
"A nomeação ao Oscar trará mais conhecimento sobre a situação na Síria e fará mais gente nos apoiar", espera a pediatra, que vive na Turquia desde 2018, após a queda do reduto rebelde de Ghuta Oriental, onde estava localizado o hospital. Essa região foi descrita pelo secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, como um "inferno na Terra".
Uma década depois do seu início, a guerra não tem fim. Com uma ofensiva do regime junto aos aliados russos contra os rebeldes e os extremistas, deixando meio milhão de cidadãos desabrigados nos últimos meses no Noroeste do país, causando uma das maiores ondas de migração em massa da Síria.
Com milhões de sírios refugiados ou desabrigados, a doutora Ballour, que esconde por trás de uma aparência tímida uma força de ferro, diz não conseguir se sentir em paz desde que saiu da região.
Na Síria, "quando ajudava as pessoas ficava mais tranquila, apesar de todas as dificuldades, os bombardeios, a fome e a trágica situação da qual éramos testemunha todos os dias".
TRAUMA
A médica continua traumatizada pelo sofrimento de todos os seus milhares de pacientes. "As crianças não entendiam nada. Sempre perguntavam o que estava acontecendo. Por que estavam nos bombardeando, por que passavam fome. Era muito difícil explicar-lhes", acrescenta. Comovida, ela se lembra de forma especial do menino Abdel Rahmane, de 11 anos, que se encontrava em uma sala de aula quando sua escola foi bombardeada, ferindo a maioria dos alunos. "Ele perdeu suas duas pernas. Quando acordou da anestesia, perguntou: 'Onde estão as minhas pernas? Por que as amputaram?".
"Não conseguia olhar nos olhos das crianças enquanto as atendia, ninguém conseguia." Sua lembrança mais dolorosa é de um ataque químico com gás sarin, em agosto de 2013, atribuído ao regime. Ao menos 1.429 pessoas morreram, entre elas 426 crianças. "No hospital, já não tínhamos espaço para colocar os cadáveres. Então, tivemos que amontoá-los", lembra-se.