A Seul dos excluídos que se vê em Parasita e o olhar agudo do diretor Bong Joon-ho sobre a luta de classes estão a anos-luz da maioria dos k-dramas, séries sul-coreanas que têm chegado com fôlego ao catálogo brasileiro da Netflix. Esses folhetins têm melodrama, amores mal resolvidos e, claro, o velho embate entre o bem e o mal. A luta de classes aqui se limita a paixões proibidas entre ricos e pobres, ou ao bullying praticado por “mauricinhos” e “patricinhas”. Se depender dos k-dramas, o espectador daqui deste lado do mundo nem de longe sonhará que o país real daqueles personagens sorridentes e gentis amarga uma das taxas de suicídio mais altas do planeta.
A “sessão da tarde” coreana é parte da Hallyu. Assim se chama a onda cultural estimulada pelo governo do país, que vem seduzindo o mundo desde os anos 1990 com suas milionárias bandas de k-pop (BTS é só uma delas), vídeos, games, filmes e séries. A onda faz parte da diplomacia – para se ter uma ideia deste soft power, basta saber que só o k-pop rendeu cerca de US$ 4,7 bilhões em 2018.
O k-pop transfere seus jovens fãs para as novelinhas coreanas, mas, de acordo com pesquisadores, mulheres adultas também buscam ali uma dose de nostalgia romântica. Calcula-se o valor anual da exportação de k-dramas em US$ 240 milhões. Em 2015, havia apenas cinco deles na grade da Netflix, que evita divulgar seus números. Hoje, eles certamente ultrapassam 140.
E a hallyu cor-de-rosa vai aumentar. No fim de 2019, a produtora sul-coreana Studio Dragon (vinculada à poderosa CJ ENM) assinou contrato com a plataforma americana por três anos. O acordo dá à Netflix exclusividade para distribuir as séries do país asiático.
Neste 2020 que mal começou, várias produções sul-coreanas chegaram à Netflix brasileira. Holo meu amor conta a história da garota solitária que se apaixona por um belo rapaz virtual – um portento da inteligência artificial (IA). Pousando no amor traz a ricaça Seri, que durante um passeio de parapente despenca na Coreia do Norte e é protegida por um militar comunista, que a ajuda a se esconder das forças do ditador Kim Jong-un. O título-spoiler já diz tudo.
MELODRAMA
Porém, nem tudo é tão cor-de-rosa na cena k-drama. Chocolate, outra recém-chegada à Netflix, tem lá suas doses de melodrama e romance, mas se passa num sanatório dedicado a pacientes desenganados. Não deixa de ser uma série delicada sobre a morte. Itaewon Class conta a história da luta de um ex-presidiário para abrir seu negócio em Seul. Mais antiga, Chefe de gabinete – já na segunda temporada – é um thriller político sobre a briga de foice pelo poder na Coreia do Sul.
Histórias de fantasmas (Chicago typewriter; Hey ghost, let's fight; Oh my ghost), épicos históricos (Mr. Sunshine), fantasia (Crônicas de Arthdal) e tramas policiais (Black; Signal; Bad guys) são alguns itens do cardápio. Outras atrações nos permitem compreender melhor o universo sul-coreano, tão diferente do nosso, como Reply 1988, Reply 1994 e Reply 1997, crônicas sobre gente de classe média, sem um pingo de glamour, lutando para sobreviver em Seul. Em Uma noite de primavera e Something in the rain, jovens casais afrontam a rigidez das convenções sociais.
Os sul-coreanos têm o seu jeito próprio de contar histórias. São raríssimas cenas calientes de sexo, como se veem em novelas brasileiras. Tudo soa bem comportado demais, reflexo da sociedade conservadora da Coreia, mas fica a dúvida: está ali a vida como ela realmente é?.
Porém, é bom avisar: machismo, misoginia, assédio sexual, jovens às voltas com o bullying e rígidos padrões sociais, garotas lutando por independência também fazem parte do universo k-drama. Impressiona a onipresença do mundo corporativo nas histórias – boa parte se passa em conglomerados, pequenos negócios ou em volta de heranças e disputas familiares pelo poder empresarial. O tigre asiático não brinca em serviço. Exibe suas garras capitalistas, afiadíssimas, até na mais inocente novelinha de amor.