Jornal Estado de Minas

Disputa entre igrejas mineiras embala samba-enredo de Marcelo Adnet

O carnavalesco Jorge Silveira ao lado do carro que contará a história do burrinho ouro-pretano (foto: Acervo pessoal/Jorge Silveira)
Ator, comediante, roteirista, imitador e autor de paródias, Marcelo Adnet agora estreia neste carnaval como compositor de samba-enredo. E em dose dupla. Ele assina em parceria com outros artistas as canções que vão embalar os desfiles das escolas de samba São Clemente, do Grupo Especial (sua agremiação do coração), e Botafogo Samba Clube, do Grupo Especial da Intendente Magalhães, a antiga Série D da folia carioca.



Adnet, de 38 anos, é fã da festa de Momo desde criança. Ele conta que os desfiles na Marquês de Sapucaí sempre o fascinaram. Foi nessa época que ele passou a exercitar um de seus talentos – a imitação. “Comecei a fazer as primeiras imitações da minha vida – Cid Moreira, Lula, Collor. E aí passei a imitar também os puxadores de samba, com aquela voz grossa, intensa”, conta.

Na adolescência, ele deixou o carnaval um pouco de lado. O interesse ressurgiu na vida adulta, quando acabou encontrando amigos que são compositores de carnaval e começou a namorar a ideia de compor um samba-enredo. Quando viu a sinopse do enredo deste ano da São Clemente, achou que era a hora. “A escola sempre teve essa tradição de levar para a avenida temas críticos, ácidos, mas bem-humorados. E acabou sendo o primeiro samba-enredo que fiz na vida.”

A história tem seu ponto de partida num saboroso episódio ocorrido em Minas Gerais. No século 18, a imagem de uma santa (provavelmente Nossa Senhora) chegou a Ouro Preto e começou a ser disputada por duas paróquias: a do Pilar e a de Nossa Senhora da Conceição. Para resolver a pendenga, um dos padres sugeriu que a santa fosse amarrada no lombo de um burro. O local onde o animal parasse seria o destino final da imagem. “Descobriram que esse burrinho era do vigário da Igreja do Pilar, e foi precisamente ali que ele parou. O bicho apenas seguiu o caminho de casa. A imagem está lá na igreja até hoje. Essa é uma das muitas origens da expressão 'o conto do vigário' e a que a gente achou mais interessante”, afirma o carnavalesco Jorge Silveira.


 
Ouça o samba-endero da São Clemente:

 
 
O enredo e o samba da São Clemente vão contar não só esse, mas outros causos de vigarice no Brasil,  até os dias de hoje, com fake news, golpes digitais e algumas alfinetadas nos políticos. “É uma temática que cai como uma luva para a gente, porque mostramos a vigarice por meio de um viés cômico”, diz Silveira. Minas estará representada na comissão de frente e no carro abre-alas. “As igrejas, as disputas entre elas, tudo estará ali. Somos amarelo e preto, que são cores que têm tudo a ver com Ouro Preto”, afirma o carnavalesco.

Adnet comenta que fez uma pesquisa minuciosa para criar o samba, assinado com André Carvalho, Pedro Machado, Gustavo Albuquerque, Camila Jorge, Luiz Carlos França, Raphael Candela e Gabriel Machado, e diz que o maior desafio foi encontrar o equilíbrio da obra. “Tem que ter dois refrões, pelo menos, tem que ter todo um desenvolvimento melódico junto à letra. Compor um samba em si é muito mais difícil do que pesquisar. Compor um samba qualquer não é tão complicado, mas compor um samba equilibrado, em que a melodia acompanha a intenção da letra – seja o clima de alegria, de profundidade – é o mais desafiador.”

Adnet afirma acreditar “muito no humor e na arte como formas de você passar uma mensagem profunda, mas de uma maneira nada sisuda ou didática. Esse samba-enredo fala da vigarice no decorrer da história brasileira, mas termina também com uma mensagem de esperança de que a maré vai virar. É importante voltar a acreditar”.


HOMENAGEM 

Foi durante as disputas na quadra da São Clemente que Adnet ficou sabendo que a Botafogo Samba Clube homenagearia a cantora e compositora Beth Carvalho (1946-2019) em seu carnaval e decidiu que também queria entrar nessa disputa. “Beth é a madrinha do samba, uma figura da maior importância, por quem eu tenho o maior amor e carinho. Então é muito bacana unir essas paixões”, afirma.

Embora goste de carnaval, essa será a primeira vez em que o ator desfilará na Sapucaí. Ele conta que sempre acompanhou pela TV e costumava ficar tenso durante a apuração das notas. A São Clemente desfila em 24 de fevereiro. “Vou estar num carro alegórico ao lado de grandes amigos, como Paulo Vieira, Mateus Solano, Marcos Veras, Letícia Lima, Welder Rodrigues. Vai ser uma grande diversão.”

Além dos ensaios de carnaval, ele tem se dedicado às gravações do Fora de hora, novo programa de humor da Globo, que ironiza o telejornalismo. Adnet não vê semelhança entre o Fora de hora e o Tá no ar, apesar de o elenco ser praticamente o mesmo. “Tem muita coisa que a gente está grava numa sexta-feira para ir ao ar na terça seguinte. Os dois humorísticos têm uma dinâmica diferente, então não cabe comparar uma coisa com a outra.”



Na atração, o comediante explora seu talento para a imitação. Uma das de maior repercussão foi a do ministro da Justiça, Sergio Moro. “No caso dele, acompanho um pouco, saco a voz, o jeito, vejo entrevistas e,  assim, consigo reproduzir. Moro e Bolsonaro eu sempre ouço com muita frequência, então não preciso estudar tanto. Acaba sendo uma coisa mais natural. Cada pessoa tem sua imitação preferida e não dá para cravar qual a de maior sucesso, mas muita gente gosta da Marina Silva, pelo desafio que ela traz”, afirma.

Sobre as reações ao humor, Adnet diz que ele “provoca uma discussão que na maioria das vezes é boa, apesar de nem todas as manifestações serem tão democráticas, como a do cara que cometeu um ato de terrorismo no Brasil (em dezembro, a produtora Porta dos Fundos foi alvo de um ataque no Rio). Um crime assim é horrível, mas a polêmica, em si, enquanto discussão, é válida para a gente refletir e a gente se propõe a isso mesmo”.

Adnet diz torcer pelo sucesso de Regina Duarte como Secretária de Cultura do governo federal. “A minha vontade é que ela vá bem. Essa é a expectativa, até porque não faz parte de mim torcer contra. Não vou ganhar nada com isso.”



O conto do vigário

Confira o samba-enredo da São Clemente, que desfila no dia 24

(De Marcelo Adnet, André Carvalho, Pedro Machado, Gustavo Albuquerque, Camila Jorge, Luiz Carlos França, Raphael Candela e Gabriel Machado)

Meu povo chegou, ô, ô
A maré vai virar, laiá
Na ginga, pra frente
Lá vem São Clemente
Sem medo de acreditar
O sino toca na capela e anuncia
Nossa Senhora, começou a confusão
Quem vai ficar com a imagem de Maria? 
O burro vai tomar a decisão
Mas o jogo estava armado
Era o conto do vigário
Nessa terra fértil de enredo
Se aprende desde cedo
Todo papo que se planta dá
Dom João deu uma volta em Napoleão
Fez da colônia dos malandros capital
Trambique, patrimônio nacional
Tem laranja
Na minha mão, uma é três e três é dez
É o bilhete premiado vendido na rua
Malandro passando terreno na Lua
Hoje, o vigário de gravata
Abençoa a mamata
Lobo em pele de cordeiro
Trago em três dias seu amor
La garantia soy yo
Só trabalho com dinheiro
Chamou o VAR, tá grampeado
Vazou, deu sururu
Tem marajá puxando férias em Bangu
Balança na rede
Abre a janela, aperta o coração
O filtro é fantasia da beleza
Na virtual roleta da desilusão
Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu
E o país inteiro assim sambou
Caiu na fake news