Ana Mendonça*
O imóvel alaranjado da Avenida João Pinheiro chama a atenção não só pelo tom vibrante, mas pelas histórias que guarda atrás das paredes coloridas. A Casa dos Quadrinhos completou 20 anos de uma trajetória de vanguarda que se confunde com a de HQs famosas em todo o mundo. Está ali o celeiro de talentosos artistas e professores com atuação tanto nacional quanto internacional, junto às editoras Marvel, DC Comics e Dynamite Entertainment.
A primeira e única escola técnica para quadrinistas em Minas Gerais já formou cerca de 3 mil alunos. Aberta em 1999, surgiu da necessidade de um espaço para esses artistas em Belo Horizonte. O fundador Cristiano Seixas conta que tudo começou depois de uma visita dele à capital paulista.
“Minha vontade era juntar o maior número de pessoas interessadas na área em BH. Conheci a Fábrica de Quadrinhos, em São Paulo, e abrimos uma escola em conjunto, bem pequena. Depois, com a intenção de criar mais cursos, fundamos a Casa de Quadrinhos”, relembra.
Atualmente, o espaço recebe jovens que sonham em criar histórias e teletransportar os heróis da infância para sua própria realidade. Com HQs mesclando cenários da capital mineira com muita ação e aventura, a escola é responsável por vários projetos.
O mais famoso e queridinho dos leitores é Os caras de Fahrenheit, história de quatro amigos que vivem perigosamente. Essa HQ faz referência a locais conhecidos dos belo-horizontinos, como o shopping Diamond Mall, Praça da Estação, Praça do Papa, obelisco da Praça Sete e o prédio da Cemig, na Avenida Barbacena.
A ideia de trazer BH para as páginas veio depois da constatação de que a maioria das HQs tem Nova York como cenário. “Tudo começou quando estávamos idealizando um projeto para o caderno Divirta-se, do Estado de Minas. A ideia era uma paródia dos filmes de ação norte-americanos, mas em nossa cidade. Quase ninguém explora o cenário mineiro, que tem cena cultural rica e apelo lá fora”, conta Cristiano Seixas. “A maioria das histórias em quadrinhos se passa nas ruas de Nova York. Imagina que diferente uma história que mostrasse as ruas de Belo Horizonte!”
LEE
“Todos nós desejamos ter superpoderes. Todos desejamos poder fazer mais do que podemos fazer.” Essa frase icônica é de Stan Lee, responsável pela popularização mundial das HQs, criador do Homem-Aranha, Hulk, Pantera Negra e dos famosos X-Men. Lee liderou a “globalização” da Marvel Comics.
Cristiano Seixas concorda com o mestre. Para ele, essa também é a filosofia da Casa dos Quadrinhos. “Aqui, as pessoas se sentem em casa. As turmas são pequenas, é bem diferente do clima de faculdade. A maioria dos alunos vem atrás de um sonho e consegue realizá-lo”, diz.
Carol Cunha, professora da Casa, é responsável pelas áreas de roteiro e criação de personagens, além das aulas de história dos quadrinhos e composição de página. Para ela, a escola é um segundo lar. “É um ambiente de grande criatividade, com imensa troca de experiências entre professores e alunos, mas também entre o próprio corpo docente. Fiz muitos amigos aqui, aprendi muito durante todos esses anos.”
CRIANÇAS
Escola técnica para a formação de quadrinistas, a Casa dos Quadrinhos também dá atenção especial a crianças de 7 a 12 anos. Curso destinado ao público infantil busca desenvolver habilidades criativas e sensoriais dos pequenos alunos, trabalhando com elas representações gráficas, a percepção de formas básicas e habilidades motoras.
Dividido em quatro módulos, o curso tem aulas de técnicas de desenho e cor, criação de narrativas visuais, desenho animado e escultura e modelagem. A duração é de um semestre.
Mulheres conquistam espaço
Nestes tempos em que o feminismo pauta a mídia, redes sociais, debates escolares e almoços de família, a mulheres quadrinistas vêm conquistando seu espaço numa indústria majoritariamente masculina. Mariamma Fonseca, ex-aluna da Casa de Quadrinhos, é uma delas.
Uma das criadoras da página Ladys Comics, a quadrinista e jornalista tem se dedicado a projetos de HQ que abordam a igualdade de gêneros e a força da mulher.
“Sempre me considerei feminista, mas nunca tive proximidade com o termo. Quando estudei na Casa dos Quadrinhos, descobri que poucas mulheres exerciam a profissão de quadrinista. Foi aí que comecei a me questionar. Perguntei a um professor o motivo de não haver alunas na sala, e ele não soube me responder”, conta Mariamma. “A gente tem a tendência de achar que isso é uma verdade, mas não é. A história dos quadrinhos vem junto da história do feminismo”, ressalta.
De acordo com Mariamma, nos anos 1930 e 1940, mulheres costumavam usar codinomes para assinar HQs. “Depois de muito pesquisar, resolvi criar o coletivo Lady Comics. A gente percebe que as autoras brasileiras fizeram e fazem história”, observa.
Carol Cunha, professora da Casa dos Quadrinhos, diz ter ouvido “comentários desnecessários e misóginos de pessoas da área”. Mas afirma que a maioria das pessoas do meio com quem convive são “calorosas e inclusivas”.
“A comunidade de quadrinhos de BH, especialmente o pessoal das HQs independentes, se apoia muito. Temos muitas mulheres produzindo por aqui, umas divulgando as outras”, informa Carol. “Gosto muito de trabalhar com protagonistas femininas de personalidades diversas e colocá-las no centro da ação. Isso, para mim, também é uma forma de ser feminista”, conclui.
* Estagiária sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria
A CASA NA CASA
Para comemorar os 20 anos da escola, a Casa dos Quadrinhos promove em sua sede a Miniexposição 20 anos Casa na Casa. Ela pode ser visitada de segunda a sexta, das 9h às 20h, e aos sábados, das 9h às 17h. A proposta é mostrar a evolução de produções criadas por alunos e professores. O espaço fica na Avenida João Pinheiro, 277, Centro. Informações: www.casadosquadrinhos.com.br. A instituição estará presente no Festival Internacional de Quadrinhos, de 27 a 31 de maio, na Serraria Souza Pinto, em BH.
O processo de produção da página de quadrinhos
Lellis*
“Faço quadrinhos de duas maneiras: quando escrevo minhas próprias histórias e quando ilustro histórias de outras pessoas. No segundo caso, só trabalho com um roteirista francês chamado Antoine Ozanam. Nesse caso, como a história não é minha, preciso pensar um pouco como um francês pensa. Eles são muito diferentes de nós em vários aspectos, e na arte de contar histórias não é diferente. Normalmente, quando pego o roteiro dele, preciso me localizar na trama, me tornar um dos personagens de fundo, apenas um figurante, mas que observa bem tudo o que se passa. É através desse olhar que transformo tudo o que “vejo” em cenas. Acho que é por isso que sempre me perguntam como consigo inventar tantos ângulos diferentes em cada página. A resposta é que quando você se insere literalmente no contexto da história, seu olhar apenas reproduz o que você vê, ou o que imagina que vê. Esse mesmo método (vamos aqui chamar de método, sem que seja um) se aplica também quando ilustro textos de livros infantojuvenis de outros autores.
A outra maneira é quando a história é minha também. Aí não há muito segredo. Grampeio um calhamaço de papéis e vou escrevendo toda a história sem fazer esboço. Todo o texto tem que sair de uma vez, com ritmo, quase como uma composição. Só assim ele faz sentido para mim. À medida que vou escrevendo, as imagens vão surgindo em minha mente e ficando gravadas. Depois, começo a esboçar cada página sustentada pelo texto que escrevi no primeiro momento. Claro, há modificações, adequações e mudanças de rotas quando a fluidez da história precisa de ajustes.
Para a finalização de cada página, uso dois métodos. O primeiro é da forma mais tradicional: aquarela sobre papel. Nele, faço cada página no formato 24cm x 36cm. Depois digitalizo e insiro os balões e os textos separadamente.
No outro método, mais digital, que uso principalmente para o mercado europeu que normalmente tem prazos mais curtos (cerca de um ano para cada livro), desenho com grafite sobre papel reciclado. Depois digitalizo esse original e aplico cor no photoshop. O trabalho digital para produções mais robustas, como as francesas, facilita a edição e modificações que se fizerem necessárias durante a produção do livro.
Em todos os métodos há algo em comum: o traço precisa ser a extensão do pensamento. Quanto mais deixo o lápis sobre o papel, mais essa conexão cataliza dinamismo, fluidez, leveza e verdade.