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Estado de Minas

O estranho mundo sem Zé do caixão

Pai do terror brasileiro que teve o desprezo da crítica antes de ser reconhecido como um talento ímpar, José Mojica Marins foi derrotado ontem por uma pneumonia, aos 83 anos, em São Paulo


20/02/2020 04:00

 A chamada Trilogia do Caixão se iniciou com À meia-noite levarei sua alma, em 1964, seguido por Essa noite encarnarei no teu cadáver, em 1967. Mojica só pôde encerrá-la em 2008, quando lançou Encarnação do demônio
A chamada Trilogia do Caixão se iniciou com À meia-noite levarei sua alma, em 1964, seguido por Essa noite encarnarei no teu cadáver, em 1967. Mojica só pôde encerrá-la em 2008, quando lançou Encarnação do demônio (foto: Arquivo EM)

O primeiro foi A mágica do mágico (1945). O último, As fábulas negras (2014). Em quase 60 anos como diretor de cinema, José Mojica Martins capitaneou mais de 40 filmes, boa parte deles com seu personagem Zé do Caixão. Criador e criatura fazem parte do imaginário nacional. Mojica partiu nesta quarta-feira (19), aos 83 anos. Morreu em São Paulo, em decorrência de uma broncopneumonia. O velório terá início nesta quinta (20), às 16h, no Museu da Imagem e do Som da capital paulista.
Ele estava internado nas últimas três semanas, mas seu estado de saúde era precário desde 2014, quando sofreu dois infartos. Nos últimos anos, estava mais recolhido, afastado do cinema. Mesmo em meio a uma nova realidade – fazia sessões de hemodiálise, havia parado de fumar – procurou manter a fleuma até quando pôde. “A pessoa vai cair, mas tem que prosseguir — cai, levanta, e bola pra frente”, afirmou, em 2016, quando chegou aos 80.
 
Artista único não somente no Brasil, como no mundo, José Mojica Martins nasceu em São Paulo, em 13 de março de 1936. Filho de espanhóis artistas de circo, ganhou sua primeira câmera aos 12 anos. Aos 17, fundou a Companhia Cinematográfica Atlas. Recrutando atores que testava com insetos e outros bichos, descobriu que sua vocação estava no terror escatológico.Aventura, faroeste, drama, Mojica fez de tudo um pouco, até abraçar o terror. Em 1963, por meio de um pesadelo, descobriu aquela que seria sua maior criação. Procurando reproduzir sua aflição onírica, ele criou o personagem Zé do Caixão e lhe deu esse nome baseado, segundo dizia, na lenda de um ser que viveu há milhões de anos na Terra e que se transformou em luz, voltando, como luz, muito tempo depois, ao planeta de origem.
 
Zé do Caixão debutou no ano seguinte, no filme À meia-noite levarei sua alma. Josefel Zanatas, o nome verdadeiro do personagem, era um agente funerário sem qualquer moral. Não crê em Deus nem no Diabo, se acha superior aos outros e quer encontrar a mulher ideal para conceber o filho perfeito. A partir deste filme, outros com o mesmo protagonista se seguiram: Esta noite encarnarei no teu cadáver, O estranho mundo de Zé do Caixão, Trilogia do terror e O despertar da besta.Fez sucesso, foi popular, mas nunca ganhou dinheiro. Sua vida pessoal era conturbada. Sofreu com o alcoolismo e o vício em jogos – chegou a perder bens, inclusive a casa da mãe. Teve sete filhos com quatro mulheres.

REDESCOBERTA De uma gentileza sem igual, a despeito da imagem soturna que apresentava publicamente – as unhas enormes, que cultivou por muitos anos, eram sua marca registrada – fez muitos amigos. Em 1998, com a publicação da biografia Maldito: A vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, de André Barcinski e Ivan Finotti (em 2001 os dois jornalistas lançaram o documentário Mojica: O estranho mundo de José Mojica Marins), uma nova geração descobre a obra do cineasta, que passa a frequentar uma série de festivais de cinema.
 
Já envolto na aura de cult, conseguiu, em 2008, verba para concluir a trilogia iniciada com À meia-noite levarei sua alma. A encarnação do demônio custou R$ 1,8 milhão, o mais caro filme de Mojica, que ele dedicou ao cineasta Rogério Sganzerla e ao crítico Jairo Ferreira, das poucas vozes do cinema a reconhecer sua obra desde o início.
Na primeira exibição pública do encerramento da Trilogia do Caixão, no Festival de Paulínia, Mojica disse ter sido perseguido por todos e pagado caro pela incompreensão. Afirmou que “as igrejas" viram Zé do Caixão como "o próprio demônio", e não um personagem.
 
Figura emblemática, também marcou presença na televisão. Nos anos 1990 apresentou a sessão Cine Trash, na TV Bandeirantes. Na década seguinte, deu início, no Canal Brasil, ao talk show O estranho mundo de Zé do Caixão, que teve sete temporadas. Já em 2015, ganhou seu próprio intérprete. O ator Matheus Nachtergaele encarnou José Mojica Marins na minissérie Zé do Caixão, do canal Space, que contava a história tanto do criador quanto de sua criatura.
 
“O Mojica é um personagem único na história do cinema mundial. Nunca houve ninguém parecido com ele, era uma figura incomparável. Eles fez filmes fantásticos, como são os filmes de terror, com uma essência brasileira. E fez contra todas as possibilidades, foi um guerreiro muito grande. Acima de tudo, ele me mostrou que era possível”, disse ao Estado de Minas o cineasta capixaba Rodrigo Aragão, apontado como um de seus sucessores. “Todo mundo que faz terror no Brasil tem que agradecer ao Mojica, pois ele influenciou não somente a mim, como a todos.”
 
Aragão lançou seu primeiro filme, Mangue negro, em 2008, quando Mojica estreou A encarnação do demônio. Os dois ficaram muito próximos por causa dos festivais de cinema em que se encontravam. Em 2015, dividiram um filme de episódios, As fábulas negras, que reuniu cinco histórias dirigidas por quatro cineastas. A Mojica coube o segmento O saci. “Ele ficou muito feliz, e vi como o cinema pode alimentar a alma de alguém. Ele veio aqui (Aragão vive no Perocão, vila de pescadores próxima de Guarapari), entrou no meio do mato, saiu muito mais jovem do que chegou”, relembrou.
 
Em Belo Horizonte, Mojica esteve pela última vez em 2013 – voltaria em 2016, mas problemas de saúde o impediram de participar de sessão Terror no Parque, que exibiu sua célebre trilogia no Parque Municipal. Produtora à frente do Curta Circuito, projeto do qual Mojica participou em 2008, Daniela Fernandes ficou próxima a ele. Toda vez que ele vinha à cidade, ela acompanhava o cineasta. Em 2013, em uma das últimas vezes que se viram, dividiram uma mesa no bar Stonehenge, no Barro Preto. Mojica tinha vindo participar do lançamento do clipe da banda Pedra Lascada. O mestre do terror, música do grupo mineiro, fazia uma homenagem a ele.
 
Na derradeira passagem pela capital mineira, em agosto daquele mesmo 2013, Mojica protagonizou ótimas passagens. Veio ao Cine Humberto Mauro para participar de uma sessão comentada de Os pássaros (1963), que integrava uma retrospectiva de Alfred Hitchcock. “Chegou ao Humberto Mauro fumando. Um segurança veio falar comigo que ele não podia entrar. Eu disse: 'Fala com ele, pois eu não falo'. O segurança não teve coragem, e ele entrou pelos fundos do cinema com o cigarro na mão”, recorda Bruno Hilário, atualmente responsável pela programação da sala.
 
Mojica era também fã de carnes exóticas. Nesta mesma ocasião, foi levado por um amigo mineiro a um restaurante do gênero. Acabou perdendo a hora para pegar o avião. Chegando a Confins, o embarque do voo tinha acabado de fechar. Sem pensar duas vezes, Mojica disparou: “Eu amaldiçoo esse avião!”. Acabaram abrindo o embarque para ele. Praga de Zé do Caixão é praga forte. (Com Agência Estado)

COVAS CINEMATOGRÁFICAS


Confira os principais títulos da carreira de José Mojica Marins

• Meu destino em tuas mãos (1962), de José Mojica Marins, com Franquito, Alvino Cassiano, Nilton Batista

• À meia-noite levarei sua alma (1964), de José Mojica Marins, com José Mojica Marins, Magda Mei, Nivaldo Lima.

• Essa noite encarnarei no teu cadáver (1967), de José Mojica Marins, com José Mojica Marins, Tina Wohlers, Nadia Freitas

• O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), de José Mojica Marins, com Luiz Sérgio Person, Mário Lima, Rosalvo Caçador

• O despertar da besta (1970), de José Mojica Marins, com José Mojica Marins, Sergio Hingst, Ozualdo Candeias

• Sexo e sangue na trilha do tesouro (1971), de José Mojica Marins, com José Mojica Marins, Roque Rodrigues, Rosângela Maldonado.

• O exorcismo negro (1974), de José Mojica Marins, com José Mojica Marins, Alcione Mazzeo, Ariane Arantes.

• Delírios de um anormal (1978), de José Mojica Marins, com Jorge Peres, José Mojica Marins, Magna Miller

• As duas faces de um psicopata (1986), de José Mojica Marins, com Débora Muniz, Ary Santiago, Goretti

• Demônios e maravilhas (1987), de José Mojica Marins, com José Mojica Marins

• Encarnação do demônio (2008), de José Mojica Marins, com Eduardo Chagas, Milhem Cortaz, Giulio Lopes

• Memórias da Boca (2014), de José Mojica Marins, Alfredo Sternheim e Clery Cunha, com José Mojica Marins, Mel Lisboa, Elisabeth Hartmann.

• As fábulas negras (2014), de José Mojica Marins, Rodrigo Aragão e Petter Baiestorf, com Carol Aragão, Walderrama dos Santos, Tiago Ferri




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