“Se queres ser universal, começa por pintar sua aldeia.” A frase atribuída a Leon Tolstói (1828-1910) cai como uma luva na vida e na obra da cineasta mineira Sueli Maxakali. Que perdoe o escritor russo, mas, no caso dessa indígena de 45 anos, é preciso mudar o segundo verbo para deixar a frase assim: “...começa por 'filmar' sua aldeia”.
Pois foi exatamente o que Sueli fez ao rodar com o marido, Isael Maxakali, o longa Yãmiyhex – As mulheres-espírito, vencedor do Prêmio Carlos Reichenbach na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, encerrada no último dia 1º. Moradora da Aldeia Verde, a 25 quilômetros de Ladainha, no Vale do Mucuri, ela vê diferença, ao focar o universo indígena, entre diretores da sua etnia e os demais. “Os brancos ensaiam antes, nós filmamos direto. Faço tudo à nossa imagem”, diz.
Sueli está certa de que as iniciativas de indígenas filmarem suas próprias histórias fortalecem a cultura do seu povo e iluminam os caminhos da produção. “Assistindo ao filme, as pessoas têm mais conhecimento sobre o modo de viver, nossa cultura. Geralmente, sabem pouco. Então, falamos sobre o dia a dia, mostramos os costumes”, afirma a cineasta, aluna do curso de formação intercultural de educadores indígenas (Fiei) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “De três em três meses, vou a Belo Horizonte estudar antropologia”, conta.
Em Minas, não faltam histórias para ganhar as telas, pois há 13 povos indígenas no estado e trajetórias muitas vezes épicas, muitas vezes dramáticas. São eles: Aranã, Kaxixó, Kiriri, Krenak, Maxakali, Mucuriñ, Kamacan, Pankararu, Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe, Puris Tuxá, Xacriabá e Xucuru-kariri. Conforme o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), “os maxacalis são o único povo no estado que, depois de mais de 200 anos de contato com os não índios, preserva suas tradições e cultura, mantendo a língua tradicional e, com ela, toda a cultura marcante e peculiar”.
Sueli conversou com a reportagem por telefone, falando da aldeia onde mora com o marido, Isael Maxakali, a filha de 25 anos, o filho de 21 e sete netos. Ela disse que começou a trilhar os caminhos do cinema no ambiente doméstico. Aprendeu com Isael, que, por sua vez, aprendeu com um indígena xavante, o Divino. “Fui aprendendo aos pouquinhos. Fazer um filme envolve muitas etapas, tem que cortar, fazer le- gendas. Temos computador aqui na aldeia, então facilita.”
SABEDORIA
No próximo dia 22 de abril, os brasileiros vão lembrar os 520 anos do descobrimento do território, inicialmente chamado de Ilha de Vera Cruz, pelo português Pedro Álvares Cabral – três dias antes, será celebrado o Dia do Índio, homenagem proposta há 80 anos e oficializada pelo presidente Getúlio Vargas (1882-1954), em 1943.
Para Sueli, será uma ótima chance para as questões indígenas serem debatidas e o cinema feito pelos cineastas dessa etnia ser apresentado ao grande público. “Acho que será uma oportunidade”, diz a diretora, que já pensa na próxima produção, com o título provisório de Filhos da Terra. O nome do filme não poderia ser mais apropriado. Afinal, os indígenas são os legítimos filhos da Terra Brasilis.
Na conversa com Suel Maxakali, o repórter ouve duas ou três vezes a palavra sabedoria – e ela, talvez mais do que técnica, roteiro e elenco, brilhe como estrela-guia de um filme. “Estamos envolvidos na nossa cultura desde novos, desde a nascença. O povo da aldeia traz uma sabedoria”, afirma. Ela encara o cinema como a tradução de uma sabedoria, ou seja, um jeito de transformar a vida em arte e a arte em vida. “Queremos que sejam feitos muitos filmes sobre os indígenas e que passem nas escolas, para os estudantes, professores.”
Sobre o prêmio conquistado na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Sueli faz questão de compartilhar: “Não é meu, mas da aldeia, de todos os que vivem aqui. O audiovisual chegou e é muito importante para nossa cultura”. Para quem não viu o filme, vai a sinopse sem spoiler: após passar alguns meses na Aldeia Verde, as yãmyhex (mulheres-espírito) se preparam para partir. Com a câmera na mão e a ideia na cabeça, Sueli e Isael Maxakali registram os preparativos e a grande festa para a despedida. Durante os dias de festa, uma multidão de espíritos atravessa a aldeia – e as yãmiyhex vão embora, mas sempre voltam com saudades dos seus pais e das suas mães.
ETNIAS EM MINAS
Veja quais são os povos indígenas no estado
Região Norte
Xacriabá: vivem em São João das Missões e Itacarambi, com população de cerca 11.175 pessoas. O território atual conta com 36 aldeias comandadas por cinco caciques e 36 lideranças.
Tuxá: com população estimada em 60 pessoas (18 famílias), vivem em Buritizeiro e Pirapora.
Região Nordeste
Maxakali: aproximadamente 1,5 mil pessoas vivem em Santa Helena de Minas, Bertópolis, Ladainha e Teófilo Otoni, numa área de 5,5 mil hectares. Cerca de 60% da população é composta por crianças e jovens com até 16 anos. A situação fundiária tem área demarcada e homologada, mas o povo maxacali continua reclamando dos limites, visto que o território tradicional foi reduzido e somente com garantia de suas terras é possível manifestar sua cultura livremente. Único povo indígena em Minas que mantém sua língua tradicional e, com ela, toda a sua cultura marcante e peculiar.
Mukurin: ficam em Campanário, na região de Itambacuri, com população não determinada. Pertencem ao grande grupo dos povos chamados botocudos. Aldeados desde o século 19 pelos frades capuchinhos, vivem atualmente em precárias condições de saúde e habitação.
Vale do Rio Doce
Pataxó: localizados em Guanhães, Carmésia, Açucena, com população de aproximadamente 400 pessoas. Têm como atividades produtivas o artesanato e a agricultura familiar, com plantio de banana, milho, feijão e farinha de mandioca.
Krenak: vivem em Resplendor e Governador Valadares, com população aproximada de 450 pessoas. Descendentes diretamente dos botocudos, resistentes guerreiros, que combateram a invasão colonial. Mantêm a língua tradicional e vários traços da cultura.
Aranã: vivem em Araçuaí e Coronel Murta, com população aproximada de 250 pessoas. Sem território ainda definido, os indígenas estão em processo de organização e de rearticulação das famílias. A partir dos anos 1990, iniciaram processo de valorização de sua memória e organização de sua história
Pankararu: cinquenta pessoas vivem em Coronel Murta, originárias de Pernambuco. Vivem de trabalho assalariado.
Região Central
Kaxixó: vivem em Martinho Campos e Pompéu, no Vale do Rio Pará. São cerca de 30 famílias, com aproximadamente 400 pessoas. Não têm território delimitado, tendo sido reconhecidos oficialmente pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em dezembro de 2001.
Sul de Minas
Xucuru-Kariri: povo oriundo de Palmeira dos Índios (AL). Após muitos conflitos de terra e mortes de indígenas, algumas famílias se mudaram para Ibotirama e depois para Glória (BA). Também fugindo de conflitos nessas localidades, alguns integrantes deste grupo vieram para Minas, em 1998. São hoje 250 pessoas.
Kiriri: vieram da Bahia. Hoje ocupam um terreno em Caldas (MG), com total de 20 famílias, e vivem da coleta de batatas, pequenas roças de subsistência e artesanato.
Grande BH
Kamacan: são cerca de 15 famílias, que se distribuem entre Belo Horizonte e Esmeraldas. Povo em contexto urbano, luta por um território não tradicional. Uns vivem de pequenas plantações e outros continuam comercializando artesanato em BH.
Pataxó Hã Hã Hãe: são cerca de 45 indígenas, em situação muito parecida com a dos kamacan. Distribuem-se entre BH e São Joaquim de Bicas. Em São Joaquim de Bicas, a comunidade foi afetada pela lama e rejeitos após o rompimento da Barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.
FONTE: CIMI/CNBB
Filmes indígenas em Berlim
O 70º Festival de Berlim, que começou no último dia 20 e prossegue até 1º de março, exibe 19 longas brasileiros em suas diversas seções. Dois títulos da mostra Fórum Expandido têm temática indígena. A cineasta Patrícia Ferreira Pará Yxapy fará a estreia mundial de seu documentário Carta de uma mulher guarani em busca de uma terra sem mal. Depois de ter feito oficinas de capacitação em audiovisual em 2007 com o projeto Vídeo nas Aldeias, Patrícia fundou o coletivo de produção Mbyá-Guarani Cinema.
O documentário que estreará em Berlim revê a trajetória do grupo, aponta a produção cinematográfica por indígenas como um ato de resistência e relaciona esses aspectos com a busca pela “terra sem mal”, um dos mitos fundantes dos guaranis.
A cineasta Ana Vaz apresenta na mostra alemã Apiyemieki?, sobre os waimiri-atroaris. O filme recupera desenhos da etnia produzidos sob o incentivo do mestre indígena Egydio Schwade, que aplicou preceitos educacionais de Paulo Freire ao proporcionar aos indivíduos dessa tribo amazônica contato com a palavra escrita, durante o período da ditadura militar brasileira.
O processo foi iniciado pela produção de desenhos, nos quais os indígenas interrogavam recorrentemente “por que os civilizados matam os waimiri-atroaris?”. O vocábulo apiyemieki? significa “por quê?”.