Ela foi Malu duas vezes – no início da carreira, na pele da heroína romântica da novela A deusa vencida (1965), que no fim da história se revela autora de cartas anônimas (vale o spoiler, pois faz mais de meio século), e posteriormente na série Malu mulher (entre 1979 e 1980), em que deixou de lado o apelido de “namoradinha do Brasil”, pôs as cartas na mesa e entrou no corpo de uma mulher sem as amarras do casamento, de peito aberto para a vida e enfrentando preconceitos. Mas, antes (1975), viveu a prostituta Janete, da peça Réveillon, do mineiro Flávio Márcio (1945-1979), e Branca Dias, em O santo inquérito, de Dias Gomes (1922-1999), em montagem de 1978.
E mais a Viúva Porcina, as Helenas dos folhetins de Manoel Carlos e a lutadora cidadã Raquel Accioli, antagonista da vilã Odete Roitman, em Vale tudo (1988), sucesso retumbante que pôs o país, e não só os noveleiros, para refletir sobre corrupção e impunidade, embalada pela música-tema de Cazuza (1958-1990), interpretada por Gal Costa: Brasil, mostra a tua cara/quero ver quem paga/pra gente ficar assim. Em mais de 50 anos de carreira, são muitas as personagens interpretadas pela atriz Regina Duarte, recém-empossada secretária Especial de Cultura do governo de Jair Bolsonaro. Se deu cara e voz a tantas figuras femininas, poderia agora se inspirar em alguma delas para desempenhar seu papel na gestão pública? Com a palavra, atores, diretores e professores de teatro.
A atriz e diretora Yara de Novaes sugere, reconhecendo a pouca probabilidade, que Regina Duarte poderia “convocar” algumas das personagens mais fortes de sua galeira para incorporá-las. Como se baixasse um santo para levar adiante a nova função. “Ela interpretou mulheres que glorificaram a justiça, a igualdade, uma sociedade equânime e, principalmente a liberdade”. Citando inicialmente Malu mulher, Yara destaca a força da personagem de O santo inquérito (1996), que lutava contra a opressão no Nordeste brasileiro do século 16. No palco, a jovem Branca Dias, vítima da Inquisição por suas origens judaicas. “Não sei se inspiração será suficiente num momento que se associa (o governo) à tirania, pois ela (a tirania) já exige a submissão”, avalia.
A série Malu mulher ficou gravada na memória de gerações de brasileiros. É o caso do diretor de teatro e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Wilson Oliveira, que dirigiu, em 1984, A lira dos 20 anos, e, no ano passado, A morte e a donzela. “A personagem ia na contramão de uma linha conservadora e, mesmo sendo no período da ditadura militar, apontava para mudanças no país”, pontua Wilson, se dizendo surpreso por Regina atuar “nesse governo”. Para ele, “o presidente agiu com esperteza ao convidar a atriz para o cargo e me surpreendi mais por ela ter aceitado”. Com todos esses sinais contraditórios, Oliveira espera que ela possa ao menos manter o diálogo e fazer a mediação entre a cultura, o Estado e a concretização de projetos.
Sucata
Sem perder o bom humor em tempo de incertezas, a atriz e palhaça Mariana Arruda, do grupo de teatro de rua Maria Cutia, não tem dúvida: a melhor personagem – e cita o nome da novela de Sílvio de Abreu, de 1990 – seria a Rainha da sucata, aquela em que Sidney Magal rebolava, cantava e convidava na abertura: Me chama que eu vou. “Penso que, diante da situação do país – com um presidente que não valoriza as artes nem tem ideia do que seja isso, que acabou com o Ministério da Cultura e está sucateando todos os setores, como a Funarte (Fundação Nacional de Artes) –, não vejo outro papel a não ser 'rainha da sucata'”, crê Mariana, cujo último espetáculo com o Maria Cutia, O auto da compadecida, de Ariano Suassuna, tem direção de Gabriel Vilela.
Na novela Rainha da sucata, a ex-namoradinha do Brasil era Maria do Carmo, uma mulher meio barraqueira que ficava rica e protagonizava embates com a fina e “quatrocentona” Laurinha Figueiroa, interpretada por Glória Menezes. O jargão “coisas de Laurinha” virou sinônimo de falcatrua. “Hoje, os artistas estão demonizados a partir dos atos do governo”, critica Mariana.
Sobram sinais contraditórios
Também lamentando os ataques à classe artística, a atriz e professora de musicalização, especialmente na área infantil, Antônia Claret, vai na toada de Malu Mulher, em quem a atual secretária Especial de Cultura deveria se inspirar para o novo posto. “Era forte, lutava pelos direitos das mulheres, se insurgia contra o machismo, era feminista”, recorda Antônia que, em abril, retorna ao palco com a peça A jagunça, no Teatro Ceschiatti, em BH. “Fico pensando que, neste governo de um presidente machista, ela terá de decidir entre dois caminhos: lutar contra isso ou então ser demitida.”
Para quem chegou ao mundo 'agora', ou estava na tenra idade quando a série foi ao ar, Malu mulher fez furor na época. Regina Duarte interpretava a recém-divorciada mãe de uma garota que juntava os cacos da vida e sofria preconceitos. A música-tema Começar de novo (de Ivan Lins, na voz de Simone) sintetizava bem isso. Levada ao ar nas noites de segunda-feira à noite, tratava assuntos então considerados incomuns na dramaturgia televisiva daquele período, como homossexualidade e racismo.
Na galeria de personagens, Antônia Claret se recorda da espalhafatosa Viúva Porcina. No sucesso de Roque santeiro, da TV Globo, levada ao ar entre 1985 e 1986, a personagem “tinha pulso, de atitude”. Enfim, uma figura “porreta” do universo feminino e dos folhetins brasileiros. Antes, a temida Censura Federal do governo militar “tesourou” (cortou, para usar palavra da época) a exibição da primeira versão de Roque Santeiro, em 1975. E outra telenovela, estrelada por Antônio Fagundes e Regina Duarte, foi censurada. Despedida de casado iria ao ar em 3 de janeiro de 1977. Escrita por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini, entraria às 22h, mostrando o desgaste natural de uma união de 10 anos e problemas familiares.
Espelho
Mas há quem enxergue através do espelho e, em vez de eleger personagens, indique uma referência. Com mais de 40 anos de estrada, a atriz, escritora, cantora e professora de teatro Elisa Santana prefere não escolher um papel na galeria de Regina Duarte, que estreou nos palcos aos 14 anos. "São papéis marcantes, mulheres de coragem, de opinião e defensoras da liberdade, que destoam do atual governo", destaca Elisa. Portanto, ela acha que a nova secretária Especial de Cultura poderia se inspirar não na ficção, mas na vida real, mais exatamente na colega de ofício Fernanda Montenegro, que, convidada por governos anteriores, nunca aceitou o cargo de ministra da Cultura.
Ela em cena - O que disseram personagens de Regina Duarte
"Eu tenho minha consciência limpa, e é com ela que eu vou ter força, é com ela que eu vou subir"
. Raquel Accioli, rasgando o vestido de noiva da filha mau-caráter, em Vale tudo, de Gilberto Braga
"Bate, Bate! Mata, Mata! Pois será a última vez que você encosta a mão em mim"
. Malu, em Malu mulher, na cena da violenta separação do marido
"Em sua opinião: Eu continuo pura como antes? (...) Tudo depende de saber se estamos do lado do Sol ou do lado da Terra"
. Branca Dias, na peça O santo inquérito, ambientada no Nordeste do século 16
"Eita! Que hoje parece que é meu dia de urtiga braba!"
. Viúva Porcina, em Roque santeiro, nos anos 1980.
"Não sou mulher de ficar sendo rejeitada, tratada como um traste, se conformar"
. Maria do Carmo, em 1990, na pele da Rainha da Sucata